João de Yepes nasceu em Fontiveros, perto de
Ávila, Espanha. Seu pai, Gonçalo de Yepes, sendo de nobre família, a tudo
renunciou para casar Catarina Álvares, uma pobre órfã. João de Yepes nasceu,
num lar pobre, mas de muito amor, a sua pobreza depressa se transformou em
miséria com a morte do pai. A partir de então, Catarina, peregrinando de terra
em terra, de feira em feira, acabou por se fixar em Medina del Campo onde João
foi recolhido num orfanato.
Certo homem rico e conceituado fixou-se nas
qualidades de João, dando-lhe possibilidades de estudar, ao mesmo tempo que o
empregou no hospital de Medina. Dez anos foi o tempo que o jovem João de Yepes
passou a tratar de doentes, vítimas de doenças incuráveis, sobretudo a sífilis
que era terrivelmente mortal, aqui João conheceu as histórias mais inverosímeis
do mundo e as dores mais atrozes dos homens.
Na sua juventude foi cobiçado por diversas Ordens Religiosas, e pelo seu
benfeitor que pensava nele como capelão do hospital, depois de ordenado
sacerdote. Aos 21 anos de idade, sem dizer nada a ninguém, João dirigiu-se ao
Convento dos Carmelitas onde tomou o hábito e onde nesse dia recebeu o nome de
Frei João de S. Matias.
Para João, a escolha da Ordem do Carmo era plenamente justificada: sendo o
Carmo a Ordem de Maria e tendo João de Yepes tanto amor à Virgem Nossa Senhora
e tendo-o ela livrado de alguns perigos na sua meninice, escolheu servi-la e
assim agradecer-lhe.
Estudou em Salamanca e cantou Missa em Medina del Campo. Foi aqui que no
ano de 1567 conheceu a Madre Teresa de Jesus, que ficou prendada com as suas
qualidades e santidade o convida para primeiro Carmelita Descalço e fundador de
entre os frades do novo estilo de vida que ela mesma havia iniciado entre as
freiras.
No Verão de 1568, vestindo já o primeiro hábito de
Carmelita Descalço, feito precisamente pela Madre Teresa de Jesus, dirigiu-se a
Duruelo onde, durante todo o Verão, foi preparando e transformando uma velha e
pobre casa no primeiro convento da nova família do Carmo. No dia 28 de Novembro
desse ano, primeiro Domingo do Advento, chegaram Frei António de Jesus e Frei
José de Cristo que deram oficialmente início à nossa Ordem. A partir deste dia,
Frei João de S. Matias passou a chamar-se Frei João da Cruz.
Quando S. Teresa de Jesus foi nomeada priora do
convento da Encarnação, em Ávila, pediu a S. João da Cruz que se dirigisse para
esta cidade como confessor das freiras deste convento. Aqui permaneceu o nosso
Santo durante cinco anos. As pessoas tinham-no por Santo, respeitando-o e
amando-o como tal. Foi tentado por uma nobre e formosa mulher de quem nunca
revelou o nome. Nesta cidade Frei João pintou o seu célebre desenho de Cristo
na Cruz, onde o famoso pintor Dali se inspirou para a sua célebre pintura de
Cristo morto sobre o mundo à qual intitulou «Cristo de S. João da Cruz». Frei
João da Cruz realizou em Ávila, verdadeiros prodígios, o que levou os abulenses
a terem por ele verdadeira admiração e profundo respeito.
Os Carmelitas Calçados de Ávila é que não estavam
nada contentes com a boa fama e o apreço que o povo tinha por Frei João da Cruz
e pelos frades da nova família de Carmelitas, chamada dos Descalços, por ele
fundada. Decidiram, por fim, pôr cobro à situação. E a melhor forma que
encontraram foi a de prender a alma do Carmo Descalço, Frei João da Cruz. Assim
o pensaram e assim o fizeram uma noite, saltaram silenciosamente o muro da casa
onde vivia, arrombaram as portas e prenderam Frei João. Levaram-no em segredo
para o convento de Toledo. Ninguém teve tempo para reagir, tudo foi feito em
grande sigilo e com tanta rapidez e discrição que ninguém pôde intervir. S.
Teresa escreveu ao rei Filipe II, mas como ninguém sabia de nada, Frei João
continuara na prisão. Os Calçados tentaram fazer por todos os meios, lícitos e
ilícitos, que Frei João abandonasse a obra começada. Torturas físicas e
psicológicas, belas ofertas, de poder e de riqueza, até mesmo uma cruz de ouro
cravejada de pedras preciosas!
Ao que Frei João respondeu: «Quem procura seguir a
Cristo pobre, não precisa de jóias nem de ouro».
Durante nove meses, de Dezembro a Agosto, Frei
João permaneceu no cárcere, onde quase morrendo de frio no Inverno, quase
asfixiado de calor no Verão, para comer davam-lhe pão, água e algumas
sardinhas. Martirizaram o seu corpo com duras disciplinas. Durante mais de meio
ano não lhe permitiram mudar ou lavar o hábito. O cárcere consiste num cubículo
tão minúsculo que até mesmo Frei João, sendo pequeno de corpo, mal cabia. A 15
de Agosto Frei João pede que lhe deixem celebrar Missa por ser a Festa de Nossa
Senhora. Indelicada e brutalmente o Prior recusa o pedido. É então que Frei
João da Cruz aproveitando a liberdade que o novo carcereiro concede, Frei João
de S. Maria, decide fugir, antes, porém, oferece ao seu carcereiro uma cruz de
madeira feita por si, pedindo-lhe perdão de todos os trabalhos que lhe causou.
Numa noite de Agosto, correndo os maiores perigos, desconhecendo em absoluto a
cidade de Toledo e sem a ajuda de ninguém, muito debilitado fisicamente, no
limite das suas forças, tão magro que as apodrecidas tiras de roupa de que se
serviu para saltar da janela não rebentaram e assim conseguirá fugir da prisão!
Acolheu-se no convento das Carmelitas Descalças que se assustaram e se
alvoroçam ao vê-lo, pois mais parecia um morto do que um vivo! Preparam-lhe
umas peras assadas com canela!
Finalmente seguro! Os Calçados procuram-no, batem
às portas do Convento das Descalças mas não encontram Frei João aí bem
escondido, toda a tarde as Carmelitas conversaram com o Santo, escutando
enlevadas os poemas que tinha escrito na prisão. Entretanto, as Carmelitas
pedem ajuda ao administrador do Hospital que levaram Frei João para sua casa,
que ficava mesmo ao lado do convento onde tinha estado preso, tudo foi feito
durante dois meses para o restabelecer.
Em Outubro de 1578 Frei João deixou Toledo e
dirigiu-se a Almodôvar onde esteve reunido o Capítulo de Lisboa. Aqui, pela
primeira vez, contemplou, S. João da Cruz o mar, que o encantou e atraiu
profundamente. Quantos o conheceram em Lisboa ficaram encantados e lhe chamavam
Santo.
No mês de Junho de 1591, o Capítulo de Madrid
deixou-o sem qualquer cargo na Ordem. Frei João desafiou o Geral da Ordem, Frei
Nicolau Doria, que discordando dele e chamando-lhe à atenção sobre algumas
situações menos claras do seu governo. Eis que paga a factura da sua ousadia
singular. Ainda há mais por onde passar e que sofrer. Frei Diogo Evangelista,
noutros tempos repreendido pelo Santo, resolve vingar-se dele e difama-o.
Depois do Capítulo Frei João partiu para o
convento de La Peñuela. No seu interior leva a secreta tarefa de acabar o
quanto antes os seus escritos. Na realidade para aí se desloca aguardando que o
chamem para embarcar no barco que o levará de Sevilha para as missões do
México. É que Frei João se oferecera para ir como missionário para o México.
Chegou a La Peñuela e prontamente se dedicou aos
seus escritos. Mas uma perna se lhe inflamou a tal ponto que a febre se recusou
deixá-lo. Era a cruz preparada para o final do caminho que o devia conduzir,
não ao México, mas, como ele próprio disse «a outras Índias melhores e mais
ricas de tesouros eternos». De La Peñuela levam-no para Úbeda. O carinho e a
alegria com que em Úbeda foi recebido pelos frades da comunidade e pelos leigos
que conheciam o Santo era indescritível. O único que destoou foi Frei Francisco
Crisóstomo, o prior, que aproveitava todas as ocasiões para o fazer sofrer,
vingando-se, assim, de Frei João que noutros tempos o tinha repreendido.
A doença agravou-se. Foram cheios de dores atrozes
os últimos dias de Frei João. Depois de uma operação dolorosíssima comentou:
«Cortem quanto for preciso, em boa hora e a vontade do meu Senhor Jesus Cristo
se faça».
No dia 7 de Dezembro soube que morreria a 14, por
ser Sábado, dia de Nossa Senhora. Durante o dia 13 perguntou insistentemente as
horas, dizendo que nesse dia lhe tinha mandado Deus ir cantar Matinas ao Céu.
Antes da meia noite, querem os irmãos rezar-lhe as orações dos agonizantes, mas
Frei João diz que não faz falta e pede que lhe leiam o Cântico dos Cânticos. Aos
primeiros versículos Frei João comenta: «ó que preciosas margaridas tem o céu!»
À meia noite, ouvindo o sino exclama: «Vou cantar Matinas para o Céu» e
adormeceu dizendo: «Nas Tuas mãos Senhor entrego o meu espírito».
Era o dia 14 de Dezembro de 1591, Sábado. Uma voz
correndo pela cidade foi gritando que tinha morrido o frade Santo do Carmo. O
povo, apesar ser de noite e dura a tempestade, acorre e força os frades a
abrirem as portas do convento para venerarem os restos mortais daquele homem a
quem todos chamavam Santo.
Oração da alma enamorada
Senhor Deus, amado meu!
Se ainda Te recordas dos meus pecados,
para não fazeres o que ando pedindo,
faz neles, Deus meu, a tua vontade,
pois é o que mais quero,
e exerce neles a tua bondade e misericórdia
e serás neles conhecido.
E, se esperas por obras minhas,
para, por meio delas, me concederes o que te rogo,
dá-as Tu, e opera-as Tu por mim,
assim como as penas que quiseres aceitar
e faça-se.
Mas se pelas minhas obras não esperas,
porque esperas, clementíssimo Senhor meu?
Porque tardas?
Porque, se, enfim,
há-de ser graça e misericórdia
o que em teu Filho te peço,
toma a minha insignificância,
pois a queres,
e dá-me este bem,
pois que Tu também o queres.
Quem se poderá libertar dos modos
e termos baixos
se não o levantas Tu a Ti em pureza de amor,
Deus meu?
Como se levantará a Ti o homem
gerado e criado em baixezas,
se não o levantas Tu, Senhor,
com a mão com que o fizeste?
Não me tirarás, Deus meu,
o que uma vez me deste
em teu único Filho Jesus Cristo,
em quem me deste tudo quanto quero.
Por isso folgarei pois não tardarás,
se eu espero.
Com que dilações esperas,
pois, se desde já podes amar a Deus
em teu coração?
Meus são os céus e minha é a terra;
minhas são as gentes,
os justos são meus, e meus os pecadores;
os anjos são meus
e a Mãe de Deus
e todas as coisas são minhas;
e o mesmo Deus é meu e para mim,
porque Cristo é meu e todo para mim.
Que pedes pois e buscas, alma minha?
Tudo isto é teu e tudo para ti.
Não te rebaixes
nem repares nas migalhas
que caem da mesa de teu Pai.
Sai para fora de ti e gloria-te da tua glória,
esconde-te nela e goza,
e alcançarás as petições do teu coração.
Ditos de Luz
I, 25-27
S. João da Cruz in As mais belas páginas de S. João da Cruz p. 176,177
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