1. Passado o Advento e as Festas
Natalícias, estamos agora no umbral do chamado «Tempo Comum» do Ano Litúrgico
que, ao contrário do que se possa pensar, não é um «Tempo secundário», mas
fundamental na vida celebrativa da Igreja Una e Santa. Na verdade, ao longo
deste «Tempo Comum», Domingo após Domingo, a Igreja Una e Santa, Baptizada e
Confirmada, Esposa Amada de Cristo, é chamada a contemplar de perto, episódio
após episódio, toda a vida histórica do seu Senhor, desde o Baptismo no Jordão
até à Cruz e à Glória da Ressurreição.
2. Esta apresentação só é
possível porque, em cada um dos Anos Litúrgicos, é proclamado, Domingo após
Domingo, praticamente em lição contínua, um Evangelho inteiro. Neste Ano A,
é-nos dada a graça de ouvir o Evangelho segundo Mateus, conhecido como «o Evangelho
da Igreja», dada a grande importância que este Evangelho granjeou na Igreja
primitiva, sobretudo devido à clareza e riqueza temáticas dos longos, solenes e
pausados Discursos de Jesus que nele encontramos, e que constituem um imenso
tesouro para a vida da Igreja. Na verdade, o leitor ou ouvinte encontra no
Evangelho segundo Mateus uma longa e bela sinfonia dos ensinamentos
fundamentais de Jesus, organizada em cinco andamentos à volta de cinco imensos
Discursos de Jesus: 1) o Discurso programático da MONTANHA (Mateus 5-7); 2) o
Discurso MISSIONÁRIO (Mateus 10); 3) o Discurso das PARÁBOLAS do REINO (Mateus
13); 4) o Discurso ECLESIAL (Mateus 18); 5) o Discurso ESCATOLÓGICO (Mateus
24-25). Os cinco Discursos são fáceis de identificar, pois, a terminar cada um,
encontra-se sempre o mesmo refrão: «E aconteceu, quando Jesus terminou estas
palavras…» (7,28; 11,1; 13,53; 19,1; 26,1).
3. O Primeiro Domingo
do «Tempo Comum» coloca então diante de nós o episódio do Baptismo de Jesus no
Jordão, conforme o Evangelho segundo Mateus 3,13-17. Aqui ficam algumas notas
características deste episódio de Mateus: 1) quando vê Jesus que vem no meio da
multidão (Mateus 3,13-14), como verdadeiro Servo do Senhor, solidário com o seu
povo e assumindo as suas faltas, João Baptista fica confuso; na verdade,
esperava um Juiz acima do povo, para julgar o povo (Mateus 3,7.10.12), e não um
Servo solidário com o povo no pecado (por isso, vem, no meio do povo, a este
baptismo de penitência); 2) além disso, e contra todas as expectativas de João,
Jesus não vem para baptizar, mas para ser baptizado (Mateus 3,11.13-14); 3) O
diálogo travado entre João Baptista e Jesus (Mateus 3,14-15) é exclusivo de
Mateus (nenhum outro Evangelho o descreve); 4) são de notar as primeiras
palavras, em absoluto, ditas por Jesus no Evangelho segundo Mateus: «É
conveniente para nós cumprir toda a justiça» (3,15); neste Evangelho, o termo
«justiça» indica o plano divino de salvação e a adequação da nossa vontade [=
obediência] a esse plano, e faz-se ouvir por sete vezes (3,15; 5,6.10.20;
6,1.33; 21,32) contra uma única vez em Lucas (1,75) e nenhuma em Marcos, e o
verbo «cumprir» aponta para a Escritura; 5) a abertura dos céus e a descida do
Espírito evoca e cumpre Isaías 63,19; 6) a voz vinda do céu também deve merecer
a atenção do ouvinte e/ou do leitor, porque, ao contrário do que acontece nos
outros Evangelhos sinópticos, a proclamação não aparece formulada na segunda
pessoa (Marcos 1,11: «Tu és o meu Filho, o Amado, em ti pus
o meu enlevo»; Lucas 3,22: «Tu és o meu Filho, o Amado, em
ti pus o meu enlevo»), mas na terceira: «Este é o meu
Filho, o Amado, em quem pus o meu enlevo» (Mateus 3,17); não
é, portanto, uma revelação dirigida a Jesus, mas a nós, salientando desde o
princípio a perspectiva eclesial de Mateus.
4. Diante dos olhos atónitos
de João, e também dos nossos, fica, portanto, Jesus que, connosco e no meio de
nós, como um de nós, desce ao rio Jordão para ser connosco baptizado.
Extraordinária a epígrafe que Pedro, na lição do Livro dos Actos dos Apóstolos,
põe sobre a vida de Jesus: «Passou fazendo o bem e curando todos» (Actos
10,38). Para nos curar, é preciso passar pelo meio de nós. O Jordão é o rio de
Cristo e dos cristãos. Rasga, de alto-a-baixo, a terra de Israel, mas atravessa
também as páginas dos dois Testamentos! Desce do sopé do Hermon e vai desaguar
no Mar Morto, fazendo um percurso sinuoso de mais de 300 km (104 km em linha
recta), e o seu nome ouve-se por 179 vezes nas páginas do Antigo Testamento e
15 vezes no Novo Testamento. As suas águas curam (2 Reis 5,14: Naamã) e dão
acesso à vida nova: é atravessando-o que o Povo entra na Terra Prometida (Josué
3,14-4,24). É ainda belo ver que, depois de um percurso de mais de 300 km, o
Jordão entra no Mar Morto, onde, através de uma intensa evaporação, parece
subir ao céu, lembrando Elias que sobe ao céu desde o leito do Jordão (2 Reis
2,8-11). É lembrando estes cenários, sobretudo o do Baptismo que também cura e
dá acesso à vida nova, que muitas Igrejas Orientais chamam «Jordão» ao canal
que conduz a água para a fonte baptismal, que todos os anos é benzida
precisamente neste Dia da Festa do Baptismo do Senhor.
5. Ilustra bem o episódio do
Baptismo de Jesus no Jordão o chamado «Primeiro Canto do Servo do Senhor»
(Isaías 42,1-7), que põe em cena Deus e o seu Servo. Deus chama este Servo «meu
Servo», diz que o segura e sustenta e que lhe dá o seu Espírito, e confia-lhe
uma missão em ordem à verdade e à justiça, à mansidão e ao ensino, à libertação
e à iluminação, entenda-se, à vida em plenitude, de todas as nações.
Verdadeiramente, Deus é a vida deste Servo, que Ele ampara, leva pela mão e
modela. Linguagem de criação, confidência e providência.
6. Há ainda a registrar uma
expressão forte para dizer a missão de mansidão confiada por Deus a este seu Servo:
«Não fará ouvir desde fora a sua voz». Ora, se não faz ouvir a sua voz desde
fora, então é porque a faz ouvir desde dentro. O grande pensador do século XX,
de origem hebraica, Emmanuel Levinas, glosava, nas suas lições talmúdicas, este
texto em sentido messiânico, dizendo que «o Messias é o único Rei que não reina
desde fora». Se não reina desde fora, então não reina com poder, dinheiro,
impostos, armas ou decretos. Se não reina desde fora, reina desde dentro,
aproximando-se das pessoas, descendo ao nível das pessoas, amando as pessoas.
Está bom de ver que Jesus vai assumir a identidade deste Servo e vai cumprir
por inteiro a sua missão. De resto, Mateus diz-nos expressamente que Jesus vem
cumprir a missão do Servo de Isaías 42,1-4, texto que este Evangelho cita por
inteiro em Mateus 12,18-21.
7. Para não esquecer: esta
bela missão de Jesus, Baptizado com o Espírito no Jordão e declarado Filho
Amado, deve ser a nossa bela missão de Baptizados com o Espírito Santo e filhos
amados de Deus.
António Couto, in Mesa de Palvras
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