1. Com o olhar cada vez mais fixo na Cruz
Gloriosa, em que foi entronizada a Luz que dá a Vida verdadeira, baptizados e
catecúmenos continuam a sua «caminhada» quaresmal: memória do baptismo [=
execução do programa filial baptismal] para os baptizados, preparação para o
baptismo por parte dos catecúmenos (Sacrossantum Concilium 109), que têm neste
Domingo IV da Quaresma – Domingo da dádiva da Luz – os seus segundos
«escrutínios»: segunda «chamada» para a Liberdade.
2.
O Evangelho narra a dádiva da Luz por Jesus à nossa pobre e cega humanidade
(João 9,1-41). Deus é Luz (1 João 1,5), e é na sua Luz que nós vemos a Luz
(Salmo 35,10). Ora, a Luz veio ao mundo (João 3,19; 12,46) para dar a Vida ao
mundo. Veio (elêluthen) ao mundo e permanece acesa no mundo, como indica o
perfeito usado no texto grego. Marcos recorre à crueza da linguagem para nos
fazer ver melhor o Mistério desta Luz-que-vem: «Vem a Luz para ser colocada
debaixo do alqueire ou debaixo da cama? Não, antes, para ser colocada sobre o
candelabro? Na verdade, nada está escondido que não seja para se manifestar»
(Marcos 4,21-22). Na verdade, o Divino, o Filho Unigénito de Deus,
Aquele-que-vem, passa escondido na humildade da nossa condição humana. É Ele a
Luz-que-vem, que agora está escondida, mas que se manifestará no novo e último
candelabro do amor de Deus (Actos 2,36), a Cruz Gloriosa, única fonte do
Espírito Santo para nós (sempre Actos 2,32-33; João 19,30.34; 7,38-39). Não
esqueçamos que ver o Filho é obra do Espírito Santo em nós (1 Coríntios 12,3).
É por isso que o Filho do Homem, Aquele (o
Único)-que-de-Deus-vem-e-a-Deus-volta (João 9,13) tem de (deî) ser levantado [=
crucificado / ressuscitado /glorificado / exaltado] (João 3,14; cf. Filipenses
2,9): só então se saberá que «Eu Sou» (título divino) (João 8,28), e atrairei
todos a Mim (João 12,32).
3. Mas agora, após o Baptismo no Jordão e a
Transfiguração / Confirmação no Tabor, durante o dia que é a sua vida toda, eis
Jesus passando sempre (parágôn: particípio presente durativo) (João 9,1) e executando
a «obra» daquele que o enviou (João 9,4). Na sua condição de «passageiro»
total, pascal, no sentido «que de Deus veio e para Deus voltava» (João 13,3),
Jesus viu um cego de nascença, e os seus discípulos também viram. Mas Jesus e
os discípulos não viram a mesma coisa. Os discípulos viram um cego, e por
detrás do cego viram o encadeado «pecado – doença», e por detrás do encadeado
viram a manifestação do Deus-garante da «ordem da retribuição». Jesus viu um
cego, mas não viu naquela cegueira a manifestação de Deus; antes, viu que «era
preciso» (deî) (João 9,4) aquele cego para que Deus se manifestasse nele. Jesus
viu um cego e como que disse: preciso deste cego! «É preciso» (deî) que Deus se
manifeste neste cego. E como é que Deus se podia manifestar naquele cego?
Através das «obras» (tà érga) daquele que Ele enviou (João 9,4), fazendo passar
aquele cego do domínio da cegueira para a liberdade da glória dos filhos de
Deus, para usar a expressão feliz de Romanos 8,21. Sendo a Luz do mundo (João
8,12; 9,5), Jesus concede o dom da vista ao cego de nascença acompanhado do dom
da Luz (Iluminação) em ordem à contemplação das coisas divinas (veja-se a
propósito Hebreus 6,4-5: texto baptismal espantoso!). Atente-se bem que o cego
de nascença recebeu o dom da vista e o dom baptismal da «divinização» para ver
e ouvir as coisas divinas. Perante este segundo dom, também os fariseus eram
cegos de nascença, e não o sabiam!
4. Significativamente, o cego recupera a vista e
recebe o dom da Luz na «piscina de Siloé» (João 9,7). De notar que «piscina» se
diz em grego kolymbêthra, nome que ainda hoje para a Igreja grega significa
«fonte baptismal». Siloé é a grecização do aramaico shlîha, hebraico shalîah,
que quer dizer «enviado». Santo Agostinho comenta, sempre de forma acertada e
penetrante: «Sabeis bem quem é o enviado; se Cristo não tivesse sido enviado,
nenhum de nós teria sido desviado do pecado. O cego lavou os olhos naquela
fonte que se traduz “Enviado”: foi baptizado em Cristo». A «fonte baptismal» do
«enviado» de Deus, daquele-que-vem-de-Deus, o Filho do Homem. O cego recobrou a
vista imediatamente. A luz da fé, essa é gradual. Passa por: «não sei» (João
9,12); «é um profeta» (João 9,17); «vem de Deus» (João 9,33); «eu creio,
Senhor» (João 9,38).
5. A narrativa vai abrindo cenários sucessivos. O
primeiro (João 9,1-7) põe Jesus e os seus discípulos face ao cego, mostra as
suas diferentes maneiras de ver, e deixa claro que é a postura criadora e
redentora de Jesus que cura o cego. O segundo (João 9,8-12) mostra-nos a discussão
estéril que se gera entre os vizinhos acerca do cego. Só palavras. O terceiro
(João 9,13-17) traz para a cena a presença dos fariseus, que também discutem o
assunto, e também não o entendem nem se entendem. O quarto (João 9,18-23)
mostra a atitude dos pais que não se querem comprometer. O quinto (João
9,24-34) põe de novo em cena os judeus e o cego, que apontam os respectivos
mestres: Moisés para os judeus; Jesus para o cego. Mas acerca de Jesus, dizem
os judeus: «Esse não sabemos DE ONDE (póthen) é» (João 9,29), ao que o cego
responde com inteligência, apontando a cegueira deles: «Isso é «espantoso» (tò
thaumastón): vós não sabeis DE ONDE (póthen) Ele é; e, no entanto, Ele abriu-me
os olhos!» (João 9,30). Que é como quem diz: só não vê quem não quer! O último
cenário (João 35-41) traz-nos de volta Jesus, que se revela ao cego,
iluminando-o, e deixa os fariseus cada vez mais às escuras!
6. Temos todos algo a ver com o cego de nascença:
os baptizados receberam como ele o dom baptismal da Luz para ver e ouvir e
viver a vida divina; os catecúmenos recebê-lo-ão. Temos todos a ver com o
Enviado, Aquele-que-vem: Ele é o único enviado do Pai para fazer a sua «obra»;
nós somos enviados por Ele (João 20,21) para continuar no mundo a sua «obra».
Mas temos de reconhecer que muitas vezes ainda vemos as pessoas e as coisas de
forma bem diferente de Jesus!
7. O Primeiro Livro de Samuel 16,1-13 serve-nos
hoje um texto fantástico em clara sintonia com o Evangelho. Trata-se da unção
real do menor dos filhos de Jessé, David, um garoto que andava nos montes a
guardar o rebanho. Nem entrava nas contas do seu pai. Teve de ser o profeta
Samuel a perguntar a Jessé, depois de este lhe ter apresentado sete filhos e
não ter dado sequer a entender que ainda tinha mais um: «Acabaram os teus
filhos?» (1 Samuel 16,11). Só aqui é que Jessé se apercebeu que ainda tinha
mais um. Mas, como David era ainda um garoto, nunca Jessé pensou que passasse
por ele a escolha de Deus! A sua presença é, portanto, tão paradoxal como a do
cego de nascença! Mas Deus não vê como nós. Deus vê o coração, e nele deposita
o seu Espírito (1 Samuel 16,13; Romanos 5,5). Levamos este tesouro em vasos de
barro… (2 Coríntios 4,7). Brilha melhor a Luz de Deus (2 Coríntios 4,6).
8. Cumpre-nos ler também hoje o grande texto da
Carta aos Efésios 5,8-14. Iluminados pela Luz da Luz, que é também a Luz do
mundo, somos a Luz do mundo: constatação, mas sobretudo desafio e programa!
Somos, por isso, «filhos da Luz» (Efésios 5,8; 1 Tessalonicenses 5,5) – um dos
termos técnicos de «divinização» – e «filhos do dia» (1 Tessalonicenses 5,5).
Chamados das trevas para a luz maravilhosa de Deus (1 Pedro 2,9), devemos
tornar-nos operadores das «obras da Luz», que não têm parte com as «obras das
trevas». O Apóstolo [= Enviado] dá testemunho do Evangelho e continua no mundo
o Evangelho. Passando como Jesus. Vendo como Jesus. Aí está a nossa missão.
9. Tempo para nos deixarmos conduzir pela mão
carinhosa e pela voz maternal e melodiosa do Bom Pastor, cantando o Salmo
23(22). Sim, Ele recebe bem os seus hóspedes: faz-nos uma visita guiada pelos
seus prados muito verdes, cheios de águas muito azuis, unge com óleo perfumado
a nossa cabeça, estende no chão do seu céu a «pele de vaca» (hebraico shulhan),
que é a sua mesa, serve-nos vinhos generosos…
D. António Couto, in Mesa de Palavras
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