1. O dinheiro, os bens, os negócios, comer, beber,
vestir, eis o que muitas vezes enche o nosso espírito e o nosso tempo. Enche e
preenche, governando a nossa mente e os passos que damos. É a Mamona de Mateus
6,24, os ídolos do dinheiro e do poder, projecção dos nossos próprios egoísmos
e das nossas próprias ilusões, diante dos quais nos ajoelhamos e a que
prestamos o culto devido. A Mamona não ama. Motor imóvel, não se mexe, não se
debruça sobre nós, não ama, não liberta, nenhum sentimento a habita. Somos nós
que nos deixamos fascinar, sugar e subjugar por ela. Nesse dia, tornamo-nos
escravos, invadidos, neutralizados e esterelizados. Como é diferente o Deus
vivo que nos ama, e, amando-nos, nos liberta de todas as amarras. O serviço ao
Deus que liberta é irreconciliável com o serviço aos ídolos que escravizam. O
maior pecado que o ser humano pode cometer é o de se esquecer de que é um
príncipe, deixando-se reduzir à escravidão.
2. O Evangelho deste Domingo VIII do Tempo
Comum (Mateus 6,24-34) mostra-nos enredados pela teia por nós tecida (!) dos
cuidados e preocupações da nossa vida. É espantoso que deparemos por seis vezes
com o verbo merimnáô (Mateus 6,25.27.28.31.34[2x]), que traduz
o nosso enredo pelos bens deste mundo e pela segurança da nossa vida.
Enredados, é o termo. Asfixiados e desumanizados é o resultado.
3. E Jesus diz outra vez nas alturas aquilo que só
nas alturas pode ser dito e entendido: «Procurai PRIMEIRO o Reino de Deus…»
(Mateus 6,33). PRIMEIRO, PRIMEIRO, PRIMEIRO…
4. Em sublime contraponto, aí estão as aves do
céu, livres e belas e soltas, que nos falam de Deus, nosso Pai! Aí estão também
os lírios do campo, que, na sua beleza, ultrapassam de longe o manto escarlate
de Salomão (Mateus 6,29), e apontam para Deus, nosso Pai! Apontam para o amor.
No estupendo poema do Cântico dos Cânticos, diz a Amada acerca do Amado: «Os
seus lábios são lírios (shôshanîm)» (5,13). E diz o Amado da Amada: «Os
teus lábios são fita vermelha» (4,3). Aí está evocada a cor avermelhada dos
lírios do campo, do manto de Salomão, dos lábios rosados…
5. Como é belo o país dos lírios do campo!
Como é belo o país das aves que voam e cantam! Como é belo o país de Deus,
nosso Pai! Dá-me, Senhor, a graça de poder dizer sempre com suficiente verdade
e simplicidade: «O meu país é onde os pássaros/ comem à mesa dos meninos».
6. E no imenso canto de Isaías 49,14-15, que
hoje temos a graça de ouvir bater nos nossos ouvidos embotados e no nosso
coração adormecido, ouvimos o queixume de Jerusalém personificada: «O Senhor
abandonou-me,/ o Senhor esqueceu-se de mim» (49,14). E a belíssima resposta de
Deus, nosso Pai: «Esquece uma mulher a sua criancinha de peito?/ Não faz
ternura ao filho do seu ventre?/ Mesmo que elas se esquecessem,/ Eu não te
esquecerei» (49,15). Mas deixem-me acrescentar o versículo 16, pois não o posso
calar, dada a indizível beleza e riqueza nova do dizer de Deus, nosso Pai: «Vê:
sobre as palmas das minhas mãos te tatuei» (49,16). Evoca o dizer de Deus,
nosso Pai, em Isaías 43,4: «És precioso aos meus olhos, e eu amo-te!».
7. Do meio do trigo e do pão, do coração, oiço
então a voz de Deus, que me dá a mão. Agarro-me. Sinto sulcos gravados nessa
mão. Sigo-os com o dedo devagar. Percebo que são as letras do meu nome, os
traços do meu rosto. Foi então por mim que desceste a este chão. O amor
verdadeiro está lá sempre primeiro.
8. Por isso, exorta-nos S. Paulo (1 Coríntios 4,1-5), nada façais por
conta própria. Fazer o que quer que seja por conta própria, por exemplo,
julgar-nos a nós mesmos ou aos outros, é fazê-lo sempre antes do tempo (kairós)
(1 Coríntios 4,4-5). O tempo, dito kairós, supõe sempre a enchente
da Palavra de Deus que nos atinge, e à qual respondemos. Ora, sem enchente da
Palavra de Deus, sem Deus Primeiro, não há critério nem resposta possível.
Devíamos considerar mais vezes estas coisas!
9. A melodia do Salmo 62(61), que é um Salmo de
Confiança, deixa hoje a ressoar no nosso coração as notas musicais que fomos
ouvindo até aqui. Confiança só no Deus vivo, minha rocha, minha fortaleza, meu
refúgio, minha salvação. E põe-nos de sobreaviso contra a «trindade»
idolátrica da violência, do roubo e da riqueza. É um dos poucos Salmos citados
nos Documentos do Concílio Vaticano II, no contexto de uma exortação aos
sacerdotes, que soa assim: «Os sacerdotes, não apegando, de forma nenhuma, o
coração às riquezas, evitem toda a cobiça e abstenham-se cuidadosamente de toda
a sombra de comércio» (Presbyterorum Ordinis, n.º 17). A exortação vale
para todos nós.
Deita com ternura a semente na terra
É o seu berço natural
E adormece suavemente
Tu e a semente
A semente não erra
A semente não mente
Adormece na terra
Aparece depois um fiozinho de erva
Nasce e cresce
Uma flor floresce
Um fruto amadurece
Um pássaro desce
E reza e canta e dança e debica e agradece
Ao Senhor da messe.
Senhor Jesus,
Dá-me um coração puro e transparente
Como uma nascente,
Como uma semente,
E ensina-me a ser simples e leve
Como aquele pássaro que do céu desce,
Reza, canta, come e agradece.
António Couto, in Mesa de Palavras
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