"Nesse instante,
caíram-lhe dos olhos uma espécie de escamas
e recuperou a vista." Act 9, 18
No texto anterior
foram apresentados os relatos que Lucas nos dá no livro dos Actos dos Apóstolos
acerca dessa famosa entrada ou experiência de Jesus Ressuscitado na vida do
apóstolo das gentes. Dissemos que, posteriormente, iríamos falar dessa entrada
ou experiência, a qual considerámos decisiva na vida de Paulo e da Igreja
nascente, também carregada de significado e pedra angular da vida de todo o discípulo
de Jesus ou da vida cristã.
Uma vida cristã que
não tenha na sua base uma verdadeira experiência de encontro com o Senhor vivo
e ressuscitado é uma vida que, mais dia, menos dia, tende a ganhar outros contornos,
a tornar-se nem “fria nem quente”, e, consequentemente, a sentir maiores
dificuldades para estar radicada em Cristo, na Igreja e no Espírito. Do
encontro ou dessa experiência extraordinária com que o apóstolo foi coroado
pouco nos é descrito, diria mesmo que só conhecemos dela o que ela mesma foi
capaz de realizar em Paulo e através de Paulo, não esquecendo, claro, a
linguagem e a forma que a traduz nos textos bíblicos, que nos Actos é uma e nas
Cartas é outra.
Comecemos por passar
os olhos na versão de Lucas e de Paulo nas suas cartas. No texto anterior não
fizemos nenhuma referência ao que o próprio apóstolo diz nos seus escritos sobre
este acontecimento. Relemos, sobretudo, Act 9,3-19. Não deixa de ser curioso que
possamos encontrar alguma falta de coincidência entre ambos os autores sagrados.
Em primeiro lugar, Paulo não se detém pormenorizadamente naquilo que se passou
consigo a caminho de Damasco. Aliás, em nenhum escrito seu conta o que
experimentou durante essa viagem. Nem sequer nos diz que caiu abaixo do cavalo
(Lucas também não o diz e convém ter presente que as viagens, nessa época, se
faziam a pé; por isso, as representações de Paulo caindo “do cavalo”, que
tantas vezes contemplamos em quadros e pinturas, não correspondem à realidade).
Alude apenas
muito suavemente à sua conversão. E até tinha razões para o fazer de forma
diferente, pois seria um bom argumento para contestar os Gálatas que punham em
causa a autenticidade do seu ministério (Gl 1,15). Mesmo quando se põe a falar
das suas visões ou revelações fá-lo de modo muito discreto, concretamente
utilizando a terceira pessoa (“Sei de um homem” 2 Cor 12,2), como se não
tivesse grande gosto em contar essas coisas no seu dia-a-dia. Todavia, vemo-lo,
nos Actos, a boca cheia a referir-se a esse acontecimento, e, uma vez, até diante
de gente desconhecida (Act 22). É caso para perguntar: será este o mesmo Paulo
das Cartas? Em segundo lugar, os Actos não mencionam que ele viu Jesus, mas
simplesmente que “se viu envolvido por uma intensa luz vinda do céu e que ouviu
uma voz que lhe falava” (Act 9,3-4). Ao passo que Paulo, nas cartas, afirma,
sem grandes descrições, ter visto a Jesus nessa viagem. Aos cristãos de
Corinto, interpela: “Não vi Jesus, nosso
Senhor” (1 Cor 9,1)? E noutra ocasião: “Em
último lugar, apareceu-me também a mim” (1 Cor 15,8). Em terceiro lugar, o
apóstolo faz questão de vincar nos seus escritos que a sua vocação-missão e o
evangelho por ele anunciado lhe foram entregues sem qualquer intermediário, ou
seja, directamente de Deus: “Paulo,
apóstolo – não da parte dos homens, nem por meio de homem algum, mas por meio
de Jesus Cristo e de Deus Pai” (Gl 1,1); “Faço-vos saber, irmãos, que o Evangelho por mim anunciado, não o
conheci à maneira humana, pois eu não o recebi nem aprendi de homem algum, mas
por uma revelação de Jesus Cristo” (Gl 1,11). Pelo contrário, os Actos
dizem que houve alguém a dar a entender a Paulo o significado da luz que o
envolveu e a ensinar-lhe a doutrina cristã (9,10-18).
Encontramos mais contrastes entre ambas as versões. Por exemplo, Actos
descreve esse acontecimento extraordinário no caminho para Damasco como uma
«conversão»; Paulo, porém, nunca diz que se converteu, mas fala da sua
«vocação» (Gl 1,15). Lucas refere que tudo foi acompanhado de fenómenos
exteriores (uma luz celestial, uma voz misteriosa, a queda ao chão, a cegueira).
O apóstolo nenhuma insinuação faz a esses fenómenos fantásticos e chama a essa
revelação que teve de experiência interior (Gl 1,16). Como se interpretam todos
estes contrastes? Qual a razão por que Lucas parece não estar em sintonia com o
que Paulo menciona nas suas cartas? Para darmos uma resposta a tudo isto faz
falta não descurar a intencionalidade de Lucas no livro dos Actos dos
Apóstolos. Daremos essa resposta na reflexão seguinte, continuando a cavar as
frases, as palavras, a forma desta e das outras narrações lucanas traduzirem a
transformação impressionante do apóstolo.
Pe. Vasco
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