23 julho, 2013

As Bodas do Cordeiro



14 de Setembro de 1940

“Venerunt nuptiae Agni et uxor eius praeparavit se”[1] (Ap 19, 7). “Chegaram as núpcias do Cordeiro e a sua esposa está preparada”. Estas palavras soaram de modo tão belo no nosso coração na véspera da nossa profissão, e assim devem ressoar novamente quando renovemos solenemente os nossos santos votos. Palavras cheias de mistério que escondem o sentido, profundo e misterioso, da nossa sagrada vocação. Quem é o Cordeiro? Quem é a esposa? De que banquete de bodas se fala aqui?
“Olhei e vi no meio do trono, dos quatro viventes e dos anciãos, um Cordeiro de pé, como que imolado” (Ap 5, 6). Quando o vidente de Patmos contemplou esse rosto, ainda estava viva nele a recordação daquele inesquecível dia junto do Jordão, quando João Baptista lhe mostrou o “Cordeiro de Deus” que “tira o pecado do mundo” (Jo 1, 29). Naquele momento tinha compreendido a palavra e agora compreendia a imagem. Aquele que antes caminhava junto do Jordão, e tinha-se manifestado agora com vestes brancas, com olhos de chamas de fogo e com a espada do Juiz, o “Primeiro e o Último” (Ap 1, 18). Ele cumpriu perfeitamente o que os ritos da Antiga Aliança manifestaram simbolicamente.
Quando no dia mais solene e santo do ano, o Sumo-sacerdote entrava no Santo dos Santos, no sacratíssimo lugar da presença de Deus, tomava dois cabritos: um, para carregar com os pecados do povo e levá-los para o deserto; o outro, para aspergir com o seu sangue o Tabernáculo e a Arca da Aliança (Lv 16). Esse era o sacrifício de expiação pelo povo. Além disso, o Sumo-Sacerdote tinha que sacrificar um novilho por ele próprio e pela sua casa e oferecer um carneiro em holocausto. Com o sangue do novilho tinha que aspergir também o Trono da Graça. Quando o sacerdote, escondido aos olhos dos homens, tinha orado por si próprio, pela sua casa e por todo o povo de Israel, saia fora, onde estava o povo à espera, e aspergia o altar para expiar os seus pecados e os do povo. Enviava depois o cabrito vivo para o deserto, oferecia o seu próprio holocausto e o do povo, e queimava os restos do sacrifício expiatório diante do acampamento (mais tarde, diante das portas da cidade).
O dia da Reconciliação era também um dia solene e sagrado. O povo permanecia em oração e jejuava no Santuário. Quando ao entardecer tudo se tinha cumprido, havia paz e alegria no coração, porque Deus tinha tirado o peso do pecado e havia dado a sua graça. Mas, o que tornou possível essa reconciliação? Certamente que não foi nem o sangue dos animais degolados, nem o Sumo Sacerdote da descendência de Aarão, – isto esclareceu-o bem S. Paulo na carta aos Hebreus –, mas a verdadeira vítima de reconciliação, prefigurada em todas as anteriores vítimas prescritas pela lei, e o Sumo Sacerdote, segundo a ordem de Melquisedec, em cujo lugar estavam os sacerdotes da casa de Aarão. Ele era também o verdadeiro Cordeiro Pascal, em nome do qual passou ao lado o anjo exterminador diante das casas dos hebreus, quando castigou os egípcios. O próprio Senhor explicou isto aos seus discípulos quando comeu com eles o Cordeiro Pascal pela última vez, e se entregou a si mesmo como alimento.
Mas, porque escolheu o Cordeiro como símbolo preferido? Porquê se mostrou ele ainda desse modo no trono da glória eterna? Porque estava livre de pecado e era humilde como um cordeiro; e porque tinha vindo para se deixar levar como cordeiro ao matadouro (Is 53, 7). João presenciou também tudo isto quando o Senhor se deixou prender no Monte das Oliveiras e depois se deixou cravar no Gólgota. Ali, no Gólgota, se cumpriu o verdadeiro sacrifício de reconciliação. A partir de então os antigos sacrifícios perderam a sua eficácia; e em breve desapareceram totalmente, assim como o antigo sacerdócio, quando o Templo foi destruído. João presenciou tudo isto de perto. Por isso, não lhe assombrava ver o Cordeiro no Trono. E porque foi uma testemunha fiel dele, foi-lhe mostrada também a Esposa do Cordeiro.
“Viu a cidade santa, a nova Jerusalém que descia do Céu, de junto de Deus, bela como uma noiva que se adornou para o seu esposo” (Ap 21, 2 e 9 ss). Assim como Cristo desceu do céu à terra, assim a sua esposa, a Santa Igreja, tem também a sua origem no céu: nasceu da graça de Deus e com o Filho de Deus desceu do céu, de modo que está unida a Ele indissoluvelmente. Foi construída com pedras vivas; a sua pedra angular foi colocada quando a Palavra de Deus assumiu a natureza humana no seio da Virgem. Nesse momento, a alma do Divino Menino e da Virgem Mãe estavam enlaçadas com o vínculo da mais íntima união, que hoje chamamos desposório.
A Jerusalém celeste, escondida aos olhos do mundo, veio à terra. Dessa primeira união esponsal nasceram todas as pedras vivas que edificaram a poderosa construção, quer dizer, cada alma chamada à vida pela graça. A Mãe-Esposa chegaria a ser a Mãe de todos os redimidos, e, como a célula fecunda, da qual surgem sempre novas células, construiria ela a cidade viva de Deus. Este mistério escondido foi revelado a S. João quando estava com a Virgem Mãe ao pé da Cruz e foi entregue a ela como filho. Ali começou a Igreja a existir visivelmente: tinha chegado a sua hora, mas não ainda a sua perfeição. Ela vive, está desposada com o Cordeiro, mas a hora do banquete nupcial festivo chegará somente quando o dragão for definitivamente vencido e os últimos dos redimidos tenham travado o seu combate até ao fim.
Assim como o Cordeiro teve que ser imolado para ser elevado sobre o trono da glória, assim o caminho da glória conduz, por meio do sofrimento e da Cruz, a todos os eleitos para o banquete das bodas. Quem quiser desposar o Cordeiro tem que se deixar cravar com ele na Cruz. Para isto são chamados todos os que foram marcados com o sangue do Cordeiro, e estes são todos os baptizados. No entanto, nem todos compreendem esse chamamento e o seguem. Existe um chamamento a um seguimento mais estreito, que ecoa mais penetrante no interior da alma e que exige uma resposta clara. É o chamamento à vida religiosa, e a resposta são os santos votos.
 Naquele a quem o Senhor chama a deixar os vínculos naturais (família, povo, ambiente), para se entregar somente a Ele, destaca-se o vínculo nupcial com o Senhor com mais força do que na multidão dos redimidos. Têm de pertencer, de modo preferencial, por toda a eternidade ao Cordeiro, segui-lo por onde quer que vá e cantar o hino das virgens que mais ninguém pode cantar (Ap 14, 1-5).
Quando desperta na alma o desejo da vida religiosa é como se o Senhor pedisse a sua mão em desposório. E  se ela se consagra a Ele através dos santos votos e acolhe o “Veni, sponsa Christi”[2], antecipa-se o banquete das bodas celestes. No entanto, trata-se aqui só da espera do alegre banquete eterno. O gozo nupcial da alma consagrada a Deus e a sua felicidade têm que acreditar-se nos combates, abertos ou escondidos, e no quotidiano da vida religiosa. O esposo escolhido por ela é o Cordeiro que foi imolado. Se quiser entrar com Ele na glória celeste tem que se deixar cravar ela própria na sua Cruz. Os três votos são os cravos. Quanto com maior disposição se estenda sobre a Cruz e suporte pacientemente os golpes de martelo, tanto mais profundamente experimentará a realidade de estar unida com o Crucificado. Assim, o facto mesmo de estar crucificada, será para ela a festa das bodas.
O voto de pobreza abre as mãos para que deixem cair tudo o que as mantém atadas. Sujeita-as de tal maneira que já não podem tender para as coisas deste mundo. Além disso, ordena as mãos do espírito e da alma: os apetites que se inclinam sempre para os prazeres e os bens materiais; as preocupações que pretendem assegurar a vida terrena em todas as suas dimensões; o activismo que se ocupa em muitas coisas, pondo assim em perigo a dedicação ao único necessário. Uma vida na abundância e a comodidade burguesa contradiz o espírito da santa pobreza e afasta-nos do pobre crucificado. As nossas irmãs, nos primeiros tempos da Reforma[3], sentiam-se felizes quando lhes faltava o necessário; quando as dificuldades tinham sido superadas, e tinham de tudo em abundância, temiam que o Senhor se apartasse delas. Algo não funciona bem numa comunidade conventual se as preocupações exteriores toma tanto tempo e forças para si que se ressente a vida interior. E algo não está de todo em ordem na alma de cada religiosa, em particular, se começa a ocupar-se de si mesma e a preocupar-se em satisfazer os seus desejos e inclinações, em vez de se abandonar à Divina Providência e aceitar agradecida o que ela envia através das irmãs responsáveis. Naturalmente, com isso não se exclui que se dê a conhecer aos superiores sobre o que exige a obrigatória consideração da saúde. Porém, uma vez feito isto, devemos libertar-nos de toda outra preocupação. O voto de pobreza pretende dar-nos a despreocupação das aves e dos lírios, para que o espírito e o coração fiquem livres para Deus.
A santa obediência sujeita os nossos pés para que já não andem mais pelos seus próprios caminhos, mas pelos caminhos de Deus. Os filhos deste mundo chamam liberdade ao não estar submetidos a nenhuma vontade alheia e a que ninguém os impeça de satisfazer os seus desejos e inclinações. Por essa liberdade lançam-se a sangrentos combates e sacrificam todos bens e a vida. Os filhos de Deus entendem diferentemente a liberdade: querem seguir sem estorvos o Espírito de Deus; e sabem que os maiores obstáculos não vêm de fora, mas estão alojados em nós mesmos. A razão e a vontade do homem, que gostosamente querem ser seu próprio senhor, não se apercebem de quão facilmente se deixam seduzir pelos apetites naturais e convertem-se em seus escravos. Não há melhor caminho para libertar-nos dessa escravidão e tornar-nos dóceis à direcção do Espírito Santo do que o caminho da santa obediência.
“Na obediência é onde a alma se sente realmente livre”, assim faz dizer Goethe à heroína de um dos seus poemas, que estão fortemente impregnados do espírito cristão. A autêntica obediência não consiste somente na não transgressão externa das prescrições da Santa Regra e das Constituições, ou das ordens dos superiores. Tem que converter-se numa renúncia à própria vontade. Por isso, o que obedece não estuda a Regra e as Constituições para descobrir subtilmente quantas das assim chamadas “liberdades” se lhe permitem ainda, mas para descobrir cada vez melhor quantos pequenos sacrifícios e oportunidades se lhe oferecem cada dia e cada hora para progredir na renúncia de si mesmo. Toma tudo isto sobre si como um jugo suave e uma carga leve, pois sente-se, através deles, mais estreita e profundamente unido ao Senhor, que foi obediente até à morte de Cruz. Os filhos deste mundo consideram esta maneira de agir inútil, irracional e mesquinha. O Salvador, que realizou durante trinta anos o seu trabalho quotidiano na base de tais pequenos sacrifícios, julgará de outro modo.
O voto de castidade procura libertar o homem de todos os vínculos naturais, para o sujeitar à cruz por cima de toda a agitação e libertar o seu coração para a união com o Crucificado. Um tal sacrifício não se leva a cabo de uma só vez. Pode-se estar muito bem apartado exteriormente das ocasiões que conduzem à tentação, e, no entanto, na memória e na fantasia permanecem ainda muitas coisas que podem perturbar o espírito e tirar a liberdade ao coração. Existe, além disso, o perigo de que no interior dos muros protegidos do convento surjam novas ataduras que impeçam a total união com o divino coração.
Com a nossa entrada na Ordem convertemo-nos novamente em membros de uma família. Devemos ver e honrar em nossas superioras e irmãs como cabeça e membros do corpo místico de Cristo. Contudo, somos humanos e pode acontecer que se misture com o amor santo, infantil e fraterno, algo demasiado humano. Cremos ver nos humanos a Cristo e não nos damos conta que nos apegamos humanamente a eles e corremos o perigo de perder de vista a Cristo. Pois bem, a inclinação humana não turba apenas a pureza do coração. Pior ainda que um demasiado amor humano é um demasiado pouco amor ao divino coração. Cada aversão, cada enfado, cada rancor que toleramos ao nosso coração fecha as portas ao Salvador. As emoções involuntárias apresentam-se, naturalmente, sem culpa nossa; mas logo que as consentimos temos que tomar inexoravelmente partido contra elas; caso contrário pomo-nos contra Deus, que é Amor, e trabalhamos em proveito do adversário. O hino que as virgens cantam no séquito do Cordeiro é seguramente o canto do mais puro amor.
A Cruz eleva-se novamente diante de nós. Ela é o sinal de contradição. O Crucificado contempla-nos desde ela: “Quereis vós também abandonar-me?” O dia da renovação dos votos tem que ser sempre um dia de um sério exame pessoal. Fomos consequentes com o que fervorosamente professamos? Vivemos como convém a esposas do Crucificado, do Cordeiro que foi imolado? Nos últimos meses ouvimos a miúdo queixas de que as muitas orações pela paz não surtiram ainda nenhum efeito. Que direito temos nós a ser atendidas? O nosso desejo de paz é, sem dúvida, autêntico e sincero. Mas, nasce de um coração totalmente purificado? Rezamos verdadeiramente “no nome de Jesus”, quer dizer, não só com o nome de Jesus na boca, mas no espírito e no sentir de Jesus, buscando a glória do Pai e não a nossa? No dia em que Deus tenha poder ilimitado sobre o nosso coração, teremos também nós poder ilimitado sobre o seu. Se tivermos isto presente, nunca teremos o valor de condenar a nenhum homem. Contudo, também não devemos desanimar se depois de muito tempo de vida religiosa tivermos que nos dizer a nós mesmas que ainda somos aprendizes e inexperientes. A fonte do coração do Cordeiro não se esgotou. Ainda hoje podemos lavar ali as nossas vestes como um dia o fez o bom ladrão no Gólgota. Confiando na força reparadora dessa sagrada fonte prostramo-nos diante do Trono do Cordeiro e respondemos à sua pergunta: “Senhor, a quem iremos? Só tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6, 68). Deixa-nos tirar àgua das fontes da salvação para nós e para todo este mundo sedento. Concede-nos a graça de poder pronunciar com um coração puro as palavras da esposa: Vem, vem, Senhor Jesus! Vem depressa!

Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein)


[1] N. d. t.: Edite Stein como grande amante da língua latina cita continuamente textos nesta língua. Respeitamos tal uso. Sempre que ela própria não ofereça a tradução, dá-la-emos em nota.
[2] N. d. t.: “Vem, esposa de Cristo”.
[3] N. d. t.: refere-se aqui à Reforma da Ordem do Carmo levada a cabo por Santa Teresa de Jesus: o Carmelo Teresiano.

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