14 de Setembro de 1940
“Venerunt nuptiae Agni et
uxor eius praeparavit se”[1]
(Ap 19, 7). “Chegaram as núpcias do Cordeiro e a sua esposa está preparada”.
Estas palavras soaram de modo tão belo no nosso coração na véspera da nossa
profissão, e assim devem ressoar novamente quando renovemos solenemente os
nossos santos votos. Palavras cheias de mistério que escondem o sentido,
profundo e misterioso, da nossa sagrada vocação. Quem é o Cordeiro? Quem é a
esposa? De que banquete de bodas se fala aqui?
“Olhei e vi no meio do
trono, dos quatro viventes e dos anciãos, um Cordeiro de pé, como que imolado”
(Ap 5, 6). Quando o vidente de Patmos contemplou esse rosto, ainda estava viva nele
a recordação daquele inesquecível dia junto do Jordão, quando João Baptista lhe
mostrou o “Cordeiro de Deus” que “tira o pecado do mundo” (Jo 1, 29). Naquele
momento tinha compreendido a palavra e agora compreendia a imagem. Aquele que
antes caminhava junto do Jordão, e tinha-se manifestado agora com vestes
brancas, com olhos de chamas de fogo e com a espada do Juiz, o “Primeiro e o
Último” (Ap 1, 18). Ele cumpriu perfeitamente o que os ritos da Antiga Aliança
manifestaram simbolicamente.
Quando no dia mais solene
e santo do ano, o Sumo-sacerdote entrava no Santo dos Santos, no sacratíssimo
lugar da presença de Deus, tomava dois cabritos: um, para carregar com os
pecados do povo e levá-los para o deserto; o outro, para aspergir com o seu
sangue o Tabernáculo e a Arca da Aliança (Lv 16). Esse era o sacrifício de
expiação pelo povo. Além disso, o Sumo-Sacerdote tinha que sacrificar um
novilho por ele próprio e pela sua casa e oferecer um carneiro em holocausto. Com o
sangue do novilho tinha que aspergir também o Trono da Graça. Quando o
sacerdote, escondido aos olhos dos homens, tinha orado por si próprio, pela sua
casa e por todo o povo de Israel, saia fora, onde estava o povo à espera, e
aspergia o altar para expiar os seus pecados e os do povo. Enviava depois o
cabrito vivo para o deserto, oferecia o seu próprio holocausto e o do povo, e
queimava os restos do sacrifício expiatório diante do acampamento (mais tarde,
diante das portas da cidade).
O dia da Reconciliação era
também um dia solene e sagrado. O povo permanecia em oração e jejuava no
Santuário. Quando ao entardecer tudo se tinha cumprido, havia paz e alegria no
coração, porque Deus tinha tirado o peso do pecado e havia dado a sua graça.
Mas, o que tornou possível essa reconciliação? Certamente que não foi nem o
sangue dos animais degolados, nem o Sumo Sacerdote da descendência de Aarão, –
isto esclareceu-o bem S. Paulo na carta aos Hebreus –, mas a verdadeira vítima
de reconciliação, prefigurada em todas as anteriores vítimas prescritas pela
lei, e o Sumo Sacerdote, segundo a ordem de Melquisedec, em cujo lugar estavam
os sacerdotes da casa de Aarão. Ele era também o verdadeiro Cordeiro Pascal, em
nome do qual passou ao lado o anjo exterminador diante das casas dos hebreus,
quando castigou os egípcios. O próprio Senhor explicou isto aos seus discípulos
quando comeu com eles o Cordeiro Pascal pela última vez, e se entregou a si
mesmo como alimento.
Mas, porque escolheu o
Cordeiro como símbolo preferido? Porquê se mostrou ele ainda desse modo no
trono da glória eterna? Porque estava livre de pecado e era humilde como um
cordeiro; e porque tinha vindo para se deixar levar como cordeiro ao matadouro
(Is 53, 7). João presenciou também tudo isto quando o Senhor se deixou prender
no Monte das Oliveiras e depois se deixou cravar no Gólgota. Ali, no Gólgota,
se cumpriu o verdadeiro sacrifício de reconciliação. A partir de então os
antigos sacrifícios perderam a sua eficácia; e em breve desapareceram
totalmente, assim como o antigo sacerdócio, quando o Templo foi destruído. João
presenciou tudo isto de perto. Por isso, não lhe assombrava ver o Cordeiro no
Trono. E porque foi uma testemunha fiel dele, foi-lhe mostrada também a Esposa
do Cordeiro.
“Viu a cidade santa, a nova
Jerusalém que descia do Céu, de junto de Deus, bela como uma noiva que se
adornou para o seu esposo” (Ap 21, 2 e 9 ss). Assim como Cristo desceu do céu à
terra, assim a sua esposa, a Santa Igreja, tem também a sua origem no céu:
nasceu da graça de Deus e com o Filho de Deus desceu do céu, de modo que está
unida a Ele indissoluvelmente. Foi construída com pedras vivas; a sua pedra
angular foi colocada quando a Palavra de Deus assumiu a natureza humana no seio
da Virgem. Nesse momento, a alma do Divino Menino e da Virgem Mãe estavam
enlaçadas com o vínculo da mais íntima união, que hoje chamamos desposório.
A Jerusalém celeste,
escondida aos olhos do mundo, veio à terra. Dessa primeira união esponsal
nasceram todas as pedras vivas que edificaram a poderosa construção, quer
dizer, cada alma chamada à vida pela graça. A Mãe-Esposa chegaria a ser a Mãe
de todos os redimidos, e, como a célula fecunda, da qual surgem sempre novas
células, construiria ela a cidade viva de Deus. Este mistério escondido foi
revelado a S. João quando estava com a Virgem Mãe ao pé da Cruz e foi entregue
a ela como filho. Ali começou a Igreja a existir visivelmente: tinha chegado a
sua hora, mas não ainda a sua perfeição. Ela vive, está desposada com o
Cordeiro, mas a hora do banquete nupcial festivo chegará somente quando o dragão
for definitivamente vencido e os últimos dos redimidos tenham travado o seu
combate até ao fim.
Assim como o Cordeiro teve
que ser imolado para ser elevado sobre o trono da glória, assim o caminho da
glória conduz, por meio do sofrimento e da Cruz, a todos os eleitos para o
banquete das bodas. Quem quiser desposar o Cordeiro tem que se deixar cravar
com ele na Cruz. Para isto são chamados todos os que foram marcados com o
sangue do Cordeiro, e estes são todos os baptizados. No entanto, nem todos compreendem
esse chamamento e o seguem. Existe um chamamento a um seguimento mais estreito,
que ecoa mais penetrante no interior da alma e que exige uma resposta clara. É
o chamamento à vida religiosa, e a resposta são os santos votos.
Naquele a quem o Senhor chama a deixar os
vínculos naturais (família, povo, ambiente), para se entregar somente a Ele,
destaca-se o vínculo nupcial com o Senhor com mais força do que na multidão dos
redimidos. Têm de pertencer, de modo preferencial, por toda a eternidade ao Cordeiro,
segui-lo por onde quer que vá e cantar o hino das virgens que mais ninguém pode
cantar (Ap 14, 1-5).
Quando desperta na alma o
desejo da vida religiosa é como se o Senhor pedisse a sua mão em desposório. E se ela se consagra a Ele através dos santos
votos e acolhe o “Veni, sponsa Christi”[2],
antecipa-se o banquete das bodas celestes. No entanto, trata-se aqui só da
espera do alegre banquete eterno. O gozo nupcial da alma consagrada a Deus e a
sua felicidade têm que acreditar-se nos combates, abertos ou escondidos, e no
quotidiano da vida religiosa. O esposo escolhido por ela é o Cordeiro que foi
imolado. Se quiser entrar com Ele na glória celeste tem que se deixar cravar
ela própria na sua Cruz. Os três votos são os cravos. Quanto com maior
disposição se estenda sobre a Cruz e suporte pacientemente os golpes de
martelo, tanto mais profundamente experimentará a realidade de estar unida com
o Crucificado. Assim, o facto mesmo de estar crucificada, será para ela a festa
das bodas.
O voto de pobreza abre as
mãos para que deixem cair tudo o que as mantém atadas. Sujeita-as de tal
maneira que já não podem tender para as coisas deste mundo. Além disso, ordena
as mãos do espírito e da alma: os apetites que se inclinam sempre para os
prazeres e os bens materiais; as preocupações que pretendem assegurar a vida
terrena em todas as suas dimensões; o activismo que se ocupa em muitas coisas,
pondo assim em perigo a dedicação ao único necessário. Uma vida na abundância e
a comodidade burguesa contradiz o espírito da santa pobreza e afasta-nos do
pobre crucificado. As nossas irmãs, nos primeiros tempos da Reforma[3],
sentiam-se felizes quando lhes faltava o necessário; quando as dificuldades
tinham sido superadas, e tinham de tudo em abundância, temiam que o Senhor se
apartasse delas. Algo não funciona bem numa comunidade conventual se as
preocupações exteriores toma tanto tempo e forças para si que se ressente a
vida interior. E algo não está de todo em ordem na alma de cada religiosa, em
particular, se começa a ocupar-se de si mesma e a preocupar-se em satisfazer os
seus desejos e inclinações, em vez de se abandonar à Divina Providência e
aceitar agradecida o que ela envia através das irmãs responsáveis.
Naturalmente, com isso não se exclui que se dê a conhecer aos superiores sobre
o que exige a obrigatória consideração da saúde. Porém, uma vez feito isto,
devemos libertar-nos de toda outra preocupação. O voto de pobreza pretende
dar-nos a despreocupação das aves e dos lírios, para que o espírito e o coração
fiquem livres para Deus.
A santa obediência sujeita
os nossos pés para que já não andem mais pelos seus próprios caminhos, mas
pelos caminhos de Deus. Os filhos deste mundo chamam liberdade ao não estar
submetidos a nenhuma vontade alheia e a que ninguém os impeça de satisfazer os
seus desejos e inclinações. Por essa liberdade lançam-se a sangrentos combates
e sacrificam todos bens e a vida. Os filhos de Deus entendem diferentemente a
liberdade: querem seguir sem estorvos o Espírito de Deus; e sabem que os
maiores obstáculos não vêm de fora, mas estão alojados em nós mesmos. A razão e
a vontade do homem, que gostosamente querem ser seu próprio senhor, não se
apercebem de quão facilmente se deixam seduzir pelos apetites naturais e
convertem-se em seus escravos. Não há melhor caminho para libertar-nos dessa
escravidão e tornar-nos dóceis à direcção do Espírito Santo do que o caminho da
santa obediência.
“Na obediência é onde a alma
se sente realmente livre”, assim faz dizer Goethe à heroína de um dos seus
poemas, que estão fortemente impregnados do espírito cristão. A autêntica
obediência não consiste somente na não transgressão externa das prescrições da
Santa Regra e das Constituições, ou das ordens dos superiores. Tem que
converter-se numa renúncia à própria vontade. Por isso, o que obedece não
estuda a Regra e as Constituições para descobrir subtilmente quantas das assim
chamadas “liberdades” se lhe permitem ainda, mas para descobrir cada vez melhor
quantos pequenos sacrifícios e oportunidades se lhe oferecem cada dia e cada
hora para progredir na renúncia de si mesmo. Toma tudo isto sobre si como um
jugo suave e uma carga leve, pois sente-se, através deles, mais estreita e
profundamente unido ao Senhor, que foi obediente até à morte de Cruz. Os filhos
deste mundo consideram esta maneira de agir inútil, irracional e mesquinha. O
Salvador, que realizou durante trinta anos o seu trabalho quotidiano na base de
tais pequenos sacrifícios, julgará de outro modo.
O voto de castidade procura
libertar o homem de todos os vínculos naturais, para o sujeitar à cruz por cima
de toda a agitação e libertar o seu coração para a união com o Crucificado. Um
tal sacrifício não se leva a cabo de uma só vez. Pode-se estar muito bem
apartado exteriormente das ocasiões que conduzem à tentação, e, no entanto, na
memória e na fantasia permanecem ainda muitas coisas que podem perturbar o
espírito e tirar a liberdade ao coração. Existe, além disso, o perigo de que no
interior dos muros protegidos do convento surjam novas ataduras que impeçam a
total união com o divino coração.
Com a nossa entrada na Ordem
convertemo-nos novamente em membros de uma família. Devemos ver e honrar em
nossas superioras e irmãs como cabeça e membros do corpo místico de Cristo.
Contudo, somos humanos e pode acontecer que se misture com o amor santo,
infantil e fraterno, algo demasiado humano. Cremos ver nos humanos a Cristo e
não nos damos conta que nos apegamos humanamente a eles e corremos o perigo de
perder de vista a Cristo. Pois bem, a inclinação humana não turba apenas a pureza
do coração. Pior ainda que um demasiado amor humano é um demasiado pouco amor
ao divino coração. Cada aversão, cada enfado, cada rancor que toleramos ao
nosso coração fecha as portas ao Salvador. As emoções involuntárias
apresentam-se, naturalmente, sem culpa nossa; mas logo que as consentimos temos
que tomar inexoravelmente partido contra elas; caso contrário pomo-nos contra
Deus, que é Amor, e trabalhamos em proveito do adversário. O hino que as
virgens cantam no séquito do Cordeiro é seguramente o canto do mais puro amor.
A Cruz eleva-se novamente diante de nós. Ela é o
sinal de contradição. O Crucificado contempla-nos desde ela: “Quereis vós
também abandonar-me?” O dia da renovação dos votos tem que ser sempre um dia de
um sério exame pessoal. Fomos consequentes com o que fervorosamente
professamos? Vivemos como convém a esposas do Crucificado, do Cordeiro que foi
imolado? Nos últimos meses ouvimos a miúdo queixas de que as muitas orações
pela paz não surtiram ainda nenhum efeito. Que direito temos nós a ser
atendidas? O nosso desejo de paz é, sem dúvida, autêntico e sincero. Mas, nasce
de um coração totalmente purificado? Rezamos verdadeiramente “no nome de
Jesus”, quer dizer, não só com o nome de Jesus na boca, mas no espírito e no
sentir de Jesus, buscando a glória do Pai e não a nossa? No dia
Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein)
[1] N. d.
t.: Edite Stein como grande amante da língua latina cita continuamente textos
nesta língua. Respeitamos tal uso. Sempre que ela própria não ofereça a
tradução, dá-la-emos em nota.
[2] N. d. t.: “Vem, esposa de
Cristo”.
[3] N. d.
t.: refere-se aqui à Reforma da Ordem do Carmo levada a cabo por Santa Teresa
de Jesus: o Carmelo Teresiano.
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