Quando se realizou na cidade de Amesterdão uma greve geral que uniu a
sociedade inteira contra o pogrom [perseguição e massacre de um grupo étnico ou
religioso, neste caso os judeus], a resposta nazi não se fez esperar: os judeus
foram massivamente despedidos dos seus empregos, impedidos de frequentar os
lugares de comércio e lazer, e selecionados para experiências de reeducação. Na
zona oriental da Holanda, foi instalado à pressa um campo de concentração
intermédio, uma espécie de antecâmara de Auschwitz.
A greve geral ocorreu em fevereiro de 1941 e, no mês seguinte, uma rapariga
de Amesterdão começa, num modesto caderno de papel quadriculado, o seu Diário.
Iniciava-se aí uma das aventuras literárias e espirituais mais significativas
do século. Ela tinha 27 anos de idade e morreria sem ter feito 30. Chamava-se
Etty Hillesum.
Graças à proteção de alguns amigos, Etty entra nesse ano como datilógrafa
numa das secções do Conselho Judaico. Um pouco como nos restantes territórios
ocupados, este organismo surge a mediar a relação entre o povo judeu e as
autoridades, tornando-se facilmente presa da manipulação nazi. Etty dá-se conta
disso e decide pedir para deixar os escritórios e acompanhar, como voluntária,
os primeiros deportados. Dentro dela esboçava-se a compreensão de que aquela
hora extrema tinha um significado a que ela não poderia subtrair-se.
De agosto de 1942 até setembro de Í943 vive no campo de concentração de
Westerbork, trabalhando no mais que improvisado hospital. Uma das vantagens do
seu estatuto de voluntária era poder ir algumas vezes a Amesterdão. É quando se
dá o inaudito. No seu quarto "belo e tranquilo", ela sente uma
saudade avassaladora de Westerbork: "Estes meses entre o arame farpado
foram os meses mais intensos e ricos da minha vida".
Amigos seus que haviam passado à resistência expuseram-lhe todos os perigos
que corria, queriam que ela fugisse enquanto era tempo, ameaçaram mesmo
forçá-la, mas a todos respondeu que não a entendiam. O que Ettty intui
fulgurantemente é que a experiência daquele inferno exige uma reinvenção humana
radical. "Vou ter de achar uma linguagem nova", escreveu ela.
Olhamo-la no campo de concentração, primeiro como voluntária e feita depois
prisioneira, atravessando o lamaçal, esgotando-se em atenções aos deportados,
ela própria ferida por dores violentas, mas sempre à procura de uma janela
donde se alcance um fragmento de céu.
A sua escrita aparece povoada de dilacerantes interrogações, é verdade:
"Às vezes pergunto-me, num momento difícil como esta noite, quais são os
planos que tens para mim, ó Deus". Mas o traço mais forte é o de uma
inexplicável confiança: "Quando ontem, às duas da manhã, finalmente
cheguei lá acima e me ajoelhei quase nua, no meio do quarto, totalmente
deprimida, eu disse de repente: "Hoje, vendo bem, vivi coisas
grandiosas".
É impossível não aproximar o percurso que faz Etty Hillesum daquele vivido
por Simone Weil. São contemporâneas, ambas judias, debatendo-se por
salvaguardar o sol interior num século de experiências sombrias, ambas
escritoras, ambas consumando até ao fim (ou mais para lá do fim) um destino de
aniquilamento como se de uma incrível aventura espiritual se tratasse. A
própria morte as aproxima, ocorrida no mesmo ano: 1943. Simone morre num
hospício inglês, como se expirasse entre as vítimas, na frente mais exposta de
um combate, e Etty num campo de concentração, para o qual partiu cantando.
Etty nasceu a 15 de janeiro de 1914. A Cruz Vermelha comunicou a sua morte
a 30 de novembro de 1943.
José Tolentino
Mendonça
In Expresso,
30.11.2013
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