30 janeiro, 2014

Nos 100 anos do nascimento de Etty Hillesum


Quando se realizou na cidade de Amesterdão uma greve geral que uniu a sociedade inteira contra o pogrom [perseguição e massacre de um grupo étnico ou religioso, neste caso os judeus], a resposta nazi não se fez esperar: os judeus foram massivamente despedidos dos seus empregos, impedidos de frequentar os lugares de comércio e lazer, e selecionados para experiências de reeducação. Na zona oriental da Holanda, foi instalado à pressa um campo de concentração intermédio, uma espécie de antecâmara de Auschwitz.

A greve geral ocorreu em fevereiro de 1941 e, no mês seguinte, uma rapariga de Amesterdão começa, num modesto caderno de papel quadriculado, o seu Diário. Iniciava-se aí uma das aventuras literárias e espirituais mais significativas do século. Ela tinha 27 anos de idade e morreria sem ter feito 30. Chamava-se Etty Hillesum.

Graças à proteção de alguns amigos, Etty entra nesse ano como datilógrafa numa das secções do Conselho Judaico. Um pouco como nos restantes territórios ocupados, este organismo surge a mediar a relação entre o povo judeu e as autoridades, tornando-se facilmente presa da manipulação nazi. Etty dá-se conta disso e decide pedir para deixar os escritórios e acompanhar, como voluntária, os primeiros deportados. Dentro dela esboçava-se a compreensão de que aquela hora extrema tinha um significado a que ela não poderia subtrair-se.

De agosto de 1942 até setembro de Í943 vive no campo de concentração de Westerbork, trabalhando no mais que improvisado hospital. Uma das vantagens do seu estatuto de voluntária era poder ir algumas vezes a Amesterdão. É quando se dá o inaudito. No seu quarto "belo e tranquilo", ela sente uma saudade avassaladora de Westerbork: "Estes meses entre o arame farpado foram os meses mais intensos e ricos da minha vida".

Amigos seus que haviam passado à resistência expuseram-lhe todos os perigos que corria, queriam que ela fugisse enquanto era tempo, ameaçaram mesmo forçá-la, mas a todos respondeu que não a entendiam. O que Ettty intui fulgurantemente é que a experiência daquele inferno exige uma reinvenção humana radical. "Vou ter de achar uma linguagem nova", escreveu ela. Olhamo-la no campo de concentração, primeiro como voluntária e feita depois prisioneira, atravessando o lamaçal, esgotando-se em atenções aos deportados, ela própria ferida por dores violentas, mas sempre à procura de uma janela donde se alcance um fragmento de céu.

A sua escrita aparece povoada de dilacerantes interrogações, é verdade: "Às vezes pergunto-me, num momento difícil como esta noite, quais são os planos que tens para mim, ó Deus". Mas o traço mais forte é o de uma inexplicável confiança: "Quando ontem, às duas da manhã, finalmente cheguei lá acima e me ajoelhei quase nua, no meio do quarto, totalmente deprimida, eu disse de repente: "Hoje, vendo bem, vivi coisas grandiosas".

É impossível não aproximar o percurso que faz Etty Hillesum daquele vivido por Simone Weil. São contemporâneas, ambas judias, debatendo-se por salvaguardar o sol interior num século de experiências sombrias, ambas escritoras, ambas consumando até ao fim (ou mais para lá do fim) um destino de aniquilamento como se de uma incrível aventura espiritual se tratasse. A própria morte as aproxima, ocorrida no mesmo ano: 1943. Simone morre num hospício inglês, como se expirasse entre as vítimas, na frente mais exposta de um combate, e Etty num campo de concentração, para o qual partiu cantando.

Etty nasceu a 15 de janeiro de 1914. A Cruz Vermelha comunicou a sua morte a 30 de novembro de 1943.

  
José Tolentino Mendonça

In Expresso, 30.11.2013

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