1.
Dia 25 de Março, Dia grande, Dia solene, que reúne a Igreja inteira, Oriente e
Ocidente, em celebração compacta ao seu Único Senhor, venerando a sua Mãe, na
Solenidade da Anunciação do Senhor à Virgem Maria, que aponta já para o Natal
do Senhor. Ainda que, de facto, separados, hoje os irmãos estão todos unidos e
reunidos à mesma mesa da Graça. Dêmos, por isso, graças a Deus. No Oriente, a
Anunciação do Senhor permanece um Mistério tão central que, nas rubricas do
calendário litúrgico, apenas cede à Sexta-Feira Santa. No rito bizantino, a
própria Vigília Pascal, caso caia no dia 25 de Março, reparte a celebração, uma
parte do cânon Pascal, outra parte do cânon da Euaggelismós [=
Evangelização], nome que este acontecimento recebe no Oriente.
2. O
Evangelho neste Dia proclamado (Lucas 1,26-38) é um tecido sublime, que as
Igrejas do Ocidente conhecem por «Anunciação», e as do Oriente por
«Evangelização». Do céu chega a Alegria incandescente a casa de Maria:
«Alegra-te, Maria» [= «Chaîre Maria»; «Ave Maria»], «o Senhor
está contigo» (Lucas 1,28), não tenhas medo» (Lucas 1,30), diz a Maria o anjo
enviado por Deus. Alguns anos mais tarde, as mulheres que vão ao túmulo de
Jesus ouvirão também a mesma música divina: «Alegrai-vos» (Mateus 28,9), «não
tenhais medo» (Mateus 28,5). Aí está outra vez a harmonia da Escritura. E nós,
Assembleia Santa que hoje se reúne para celebrar os mistérios do seu Senhor e
também de Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, estamos também permanentemente a
ouvir esta divina melodia. Portanto, irmãos amados em Cristo, Alegrai-vos, não
tenhais medo, o Senhor está no meio de nós!
3. O
centro da cena é de Maria, que podemos ver em alta sintonia com a Palavra da
Alegria que lhe chega de Deus. Ao contrário da nossa muito ocidental maneira de
ver e de sentir, note-se bem que Maria não esboça qualquer reacção à presença
do anjo, que tão-pouco é narrada. Ela fica perturbada é com a Palavra que lhe
cai nos ouvidos e no coração (Lucas 1,29). «Conceberá no ventre» o Filho de
Deus (Lucas 1,31-33). «Conceber no ventre» é um pleonasmo intencional só dito
de Maria por duas vezes (Lucas 1,31 e 2,21), claramente para a pôr em pura
sintonia com o Deus do «ventre das misericórdias» (Lucas 1,78). Note-se como,
na sequência do texto, de Isabel só se diz que «concebeu» (Lucas 1,36). Surge
então a esperada objecção de Maria: «Como será isso, se não conheço homem?»
(Lucas 1,34). O anjo explica que essa concepção terá a ver com a intervenção de
Deus, pois se trata do Filho de Deus (Lucas 1,35). Já atrás Maria tinha sido
apresentada como «virgem casada» (parthénos emnêsteuménê) (Lucas 1,27).
Não se trata de uma subtileza, mas de um estatuto jurídico em que as pessoas
consagravam a Deus a sua virgindade e se dedicavam completamente a Deus.
Casavam-se, não em ordem à procriação, mas à protecção mútua. Este estatuto
jurídico, não sendo usual no mundo judaico do seu tempo, está, porém,
solidamente documentado nos últimos séculos antes de Cristo e depois de Cristo.
4.
Ultrapassada a objecção, Maria responde: «Eis a serva do Senhor; faça-se em mim
segundo a tua Palavra» (Lucas 1,38). Maria responde que Sim. Deus chama, mas
não impõe. A Maria, e a cada um de nós. Podemos sempre aceitar Deus ou
esconder-nos de Deus. Deixar Deus entrar, ou fechar-lhe a porta. Maria aceitou,
e, por isso, todas as gerações a proclamarão Bem-aventurada. É o que estamos
hoje e aqui a fazer: Feliz és tu, Maria, pioneira de um mundo novo, porque
acreditaste em tudo quanto te foi dito da parte do Senhor! Feliz também aquele
que ouve a Palavra de Deus e a põe em prática!
5.
Memorial desta beleza incandescente é a Basílica da Anunciação, em Nazaré. Esta
grandiosa Basílica, em três planos, foi inaugurada em 25 de Março de 1969, e
foi visitada, ainda as obras estavam em curso, em 1964, pelo Papa Paulo VI.
Escavações feitas antes desta grandiosa construção puseram a descoberto, e
podem ver-se ainda hoje, os majestosos pilares de uma Catedral levantada em
1099 pelo príncipe cruzado Tancredo, bem como o pavimento em mosaico de uma
igreja bizantina, que pode ser datada do ano 450. Mas, descendo mais fundo, até
às entranhas da actual Basílica, acede-se à Gruta da Anunciação, sob cujo altar
se lê a inscrição Verbum caro hic factum est[«Aqui o Verbo se fez
carne»], e a outros lugares de culto antigos, talvez já do século II. Numa
grafite antiga foi encontrada a gravação XE MAPIA, abreviação de Chaîre
Maria, a primeira Ave-Maria da história.
6.
Já se ouve a música de Isaías 7,10-14; 8,10. O cenário é a guerra
siro-efraimita, que são dois exércitos, da Síria e de Israel, que põem cerco a
Jerusalém, capital do Reino de Judá, no ano 734 a. C., com o intuito de depor
Acaz, rei de Judá. Já se vê um Isaías firme e confiante, que, enviado por Deus
(Isaías 7,3), atravessa sem medo o cenário da guerra siro-efraimita, para levar
ao amedrontado e trémulo rei Acaz (Isaías 7,2), que se encontra junto da
nascente de Gihôn, a inspeccionar as águas, uma palavra de conforto
e de esperança. Para significar melhor tudo isto, Isaías leva o seu filho, que
ostenta um nome de esperança She’ar yashûb [= «um
“resto” voltará»], pela mão (Isaías 7,3). Um pai, que ousa atravessar um
cenário de guerra levando um filho pela mão, é, na verdade, testemunha de outra
segurança! A mensagem que Isaías comunica a Acaz consta de quatro pontos: a)
tem calma; b) não tenhas medo; c) segura-te em Deus; d) pede um sinal (Isaías
7,11). Já se sabe que o descrente Acaz não pedirá o sinal, diz ele, para não
tentar a Deus (Isaías 7,12), isto é, hipocritamente alega uma razão
aparentemente religiosa como paravento para esconder a sua incredulidade. Ora,
pedir um «sinal», nestas circunstâncias, era sinal de fé e de humildade que
reconhece a sua pobreza, como se depreende do comportamento de Abraão (Génesis
15,8), de Gedeão (Juízes 6,36-40) e de Ezequias (2 Reis 20,8-11). Marcada pela
incredulidade era antes a recusa de pedir esse «sinal», como sucede com Acaz,
que julga Deus incapaz de se interessar pelos nossos problemas.
7.
Pouco importa. Eis que Deus dá, de igual maneira, o seu sinal: «A jovem» (‘almah TM; parthénos LXX)
concebeu e dará à luz um filho a quem porá o nome de ‘immanû ’el [=
«Connosco Deus»]» (Isaías 7,14). A jovem, aqui mencionada, é, em primeira
leitura, certamente Abia, filha de Zacarias, esposa de Acaz, mãe de Ezequias (2
Crónicas 29,1). O filho, cujo nascimento é anunciado é certamente, em primeira
leitura, Ezequias, filho de Acaz e de Abia, que ainda não tinha dado a Acaz um
herdeiro. O nascimento de Ezequias parece ter ocorrido em 733, depois da guerra
siro-efraimita. Todavia, como ele não é nomeado, a promessa não se esgota na pessoa
de Ezequias. Abre-se ao herdeiro dinástico de qualquer tempo, portador das
promessas de Deus para o seu povo. Este «filho» fica assim no campo dos
«sinais», de resto como Isaías e os seus filhos (Isaías 8,18), e Mateus procede
de forma correcta ao ver a promessa realizar-se em Jesus (Mateus 1,18-25). Em
primeira leitura, o «sinal» dado a Acaz é que a dinastia davídica, que corria
perigo em 734, se salvará. Virá mesmo um tempo de prosperidade e de paz que
marcará a infância daquele menino, que se alimentará de leite coalhado e mel
(Isaías 7,15), alimentos que simbolizam abundância porque são dom de Deus
(Deuteronómio 6,3; 11,9; 32,13-14; Êxodo 3,8 e 17).
8.
Por outro lado, antes que o menino atinja a idade da razão, portanto, dentro em
breve, os reinos de Israel e da Síria, agora agressores, serão reduzidos a
escombros (Isaías 7,16; cf. 8,3-4). O que acontece, de facto, sendo a Síria
anexada pela Assíria ainda em 734, o mesmo acontecendo a grande parte do
território de Israel, em 733. A paz e a felicidade dos dias de David e Salomão,
ou mesmo do tempo dos Juízes, serão recordadas e vividas em Judá. É o que
pretende dizer o oráculo: «O Senhor fará vir sobre ti […] dias tais como não
existiram desde o dia em que Efraim se separou de Judá» (Isaías 7,17), ou seja,
desde 926, data da morte de Salomão e da separação do Reino de Israel (Norte)
da Corte de Jerusalém.
9.
Logo a seguir, Isaías introduz um oráculo de desgraça sobre Judá: as águas
impetuosas da Assíria virão sobre Judá e submergi-lo-ão (Isaías 8,6-8). Mas é
neste novo contexto que o profeta deixa sair, por duas vezes, o desabafo: «‘immanû
’el»! (8,8 e 10). Acostagem extraordinária da salvação à desgraça! Com este
suspiro, num novo contexto, a profecia do Emanuel tornou-se tradição já para o
próprio Isaías. Esta tradição tem a sua história. Já não temos apenas um
sentido histórico único e determinado, mas começa a história da tradição do
oráculo do Emanuel que, passando por Is 9,5 e 11,1-9, chegará ao Novo
Testamento (Mateus 1,23). Deus connosco sempre.
10.
A toada musical que hoje embala a nossa vida está em consonância com esta
avenida de sentido que atravessa a Escritura Santa. Travessia que jamais
fazemos sozinhos, porque Ele está connosco sempre, e é Ele que abre a Escritura
para nós (Lucas 24,32). Na verdade, canta assim o Salmo Responsorial de hoje:
«Sacrifício e oblação não Te agradaram,/ mas escavaste-me os ouvidos» (Salmo
40,7). E o texto, notável, da Carta aos Hebreus cita actualizando assim:
«Sacrifício e oblação Tu não quiseste,/ mas formaste-me um corpo» (Hebreus
10,5). E é assim, que vem ao nosso mundo, nascendo de Maria, para, no seu corpo
e com o seu corpo, mãos, pés, entranhas, coração, inteligência, fazer a vontade
de Deus (Hebreus 10,7 e 9; cf. Salmo 40,9), como está escrito acerca d’Ele no
rolo antigo (Hebreus 10,7; cf. Salmo 40,8). Assim é ultrapassada a Economia
antiga dos muitos sacrifícios e ofertas pela Economia nova em que somos
santificados por meio da oferta (minhah) do corpo de Jesus Cristo uma
vez por todas (epáphax) (Hebreus 10,10).
D. António Couto, in Mesa de Palvras
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