1. O Evangelho
deste III Domingo da Páscoa convida-nos a fazer aquela que pode ser considerada
a mais bela viagem de doze quilómetros de toda a Escritura. A viagem que nos
leva de Jerusalém a Emaús, actual aldeia palestiniana de nome El-Kubèibeh, que
guarda a memória deste maravilhoso episódio de Lucas 24,13-35.
2. Aperceber-nos-emos, porém,
rapidamente que se trata menos de uma viagem transitiva sobre o mapa, e mais,
muito mais, de uma viagem intransitiva nas estradas poeirentas do nosso
embotado coração. É assim que dois deles (dýo ex autôn) – e está aqui
assinalada uma ruptura destes dois com a comunidade reunida em Jerusalém – saem
da comunidade. O texto retrata-os bem: estão em dissensão com a comunidade,
pelo caminho conversam familiarmente (homiléô) sobre as coisas acontecidas em
Jerusalém (Lucas 24,14 e 15), mas também debatem (syzêtéô) (Lucas 24,15), e
entram mesmo em dissensão um com o outro, opondo argumentos (antibállô) (Lucas
24,17).
3. Estando assim as coisas, narra o texto que
um terceiro viajante, que é Jesus – informa-nos o narrador –, se aproximou
deles e caminhava com eles, mas os seus olhos estavam impedidos de o reconhecer
(Lucas 24,15-16). Neste ponto preciso, impõem-se duas pequenas anotações.
Primeira: Jesus é sempre aquele que caminha com, faz conjunção, onde nós, e
quando nós, estamos em disjunção. E não caminha connosco apenas algum tempo.
Caminha connosco sempre, pois o verbo grego está no imperfeito de duração
(syneporeúeto): caminhava com. Segunda: não é a incapacidade deles ou a nossa
que nos impede de reconhecer Jesus. Na verdade, o texto diz, na sua crueza, que
os seus olhos estavam impedidos (ekratoûnto). O verbo grego está num imperfeito
passivo. Entenda-se correctamente: é Deus que impede os nossos olhos de o
reconhecerem agora. Esta indicação deixa-nos alerta para o momento em que Deus
vai desimpedir os nossos olhos para o reconhecermos.
4. Este
terceiro, que caminha sempre connosco, e que faz conjunção sobre as nossas
disjunções, é também aquele que conduz o nosso caminho. Ele é o Presidente.
Preside sempre. Por isso, começa a fazer perguntas: «Que são estas palavras que
opondes entre vós enquanto caminhais?» (Lucas 24,17). Ele é o Mestre que nos
faz perguntas pedagógicas, para nós nos dizermos. A primeira consequência em
nós desta pergunta certeira é fazer com que mostremos a nossa tristeza e
desilusão: «E eles pararam com o rosto triste» (Lucas 24,17). E depois, atónitos,
perguntamos: «Tu és o único (mónos) estrangeiro residente (pároikos) em
Jerusalém que não conheces as coisas que nela aconteceram nestes dias?» (Lucas
24,18). E ele pergunta outra vez pedagogicamente: «O que foi?» (Lucas 24,19).
Duas anotações. Primeira: sem o sabermos, fazemos uma afirmação correcta: de
facto, ele é o único que conhece as coisas de outra maneira. Segunda: quando
ele pergunta: «O que foi?», é para nos levar a dizer a desilusão e o
sem-sentido que nos habita. Ele é o Mestre que faz as perguntas, para depois
corrigir as respostas (Lucas 24,25-27).
5. Nestas
conversas guiadas, parece que o caminho se encurtou. Estão em Emaús. E,
chegados aí, Jesus fez como se (prosepoiêsato: aor. de prospoiéomai)fosse
caminhar para mais longe (Lucas 24,28). «Fez como se» é uma finta pedagógica. O
texto não diz que ele ia caminhar para mais longe. Diz que Ele «fez como se
fosse…». Finta pedagógica, que provoca logo a nossa oração: «Fica connosco…»
(Lucas 24,29). Atenção, portanto: também a nossa oração é provocada por ele. Ele é o Mestre, o
Presidente.
6. No seguimento
do nosso pedido, ele entra para ficar connosco. Não apenas algum tempo, como
fazemos nós quando visitamos os amigos. Ele entra para ficar connosco sempre,
para presidir à nossa vida toda. Preside, portanto, à nossa mesa: recebe o pão,
bendiz a Deus, parte o pão e dava (epedídou: imperf. de epidídômi), imperfeito
de duração. Atitude que continua ainda hoje. É aqui que são abertos (por Deus)
os nossos olhos, antes impedidos por Deus de reconhecer Jesus. Decifração da
Cruz. Ele está vivo e presente. A sua vida é uma vida a nós dada. Sempre a ser
dada. É agora que vemos a luzinha que ele acendeu já no nosso coração, no
caminho… Não é o escuro da noite exterior que nos mete medo. O que nos mete
medo é o escuro interior. Ei-los que partem em plena noite para Jerusalém.
Viagem da conjunção, fazendo o caminho inverso da primeira viagem da disjunção.
7. Ainda hoje é
bom e salutar fazer esta viagem no mapa e no coração a Emaús (El-Kubèibeh). O
peregrino encontra nesta aldeia árabe uma igreja, à guarda dos Padres
Franciscanos da Custódia da Terra Santa, que recorda os acontecimentos narrados
no sublime episódio de Lucas 24, que acabámos de recordar. A actual igreja é
uma construção de inícios do século XX, estilo românico-gótico de transição,
que respeita as linhas e integra algumas pedras de uma igreja construída pelos
Cruzados no século XII. Esta igreja encontrava-se ainda de pé no século XIV,
mas estava já em ruínas no século XV, de acordo com o testemunho de peregrinos
qualificados. Esta construção dos Cruzados enquadra aquilo que se pensa serem
os fundamenos da casa de Cléofas, um dos dois que, naquele primeiro dia da
semana (Lucas 24,1 e 13), se dirigiam para uma aldeia, chamada Emaús, que
distava 60 estádios (11-12 km) de Jerusalém.
8. Nas paredes
desta igreja, pode ler-se em várias línguas um belo e significativo poema, que
aqui passa também a conhecer o português: «Todos os dias/ Te encontramos/ no
caminho./ Mas muitos reconhecer-Te-ão/ apenas/ quando/ repartires connosco/ o
Teu pão./ Quem sabe?/ Talvez/ no último entardecer».
9. E o poeta
inglês Thomas S. Eliot faz esta evocação da cena de Emaús: «Quem é o terceiro,
que vai sempre ao teu lado? Se me ponho a contar, juntos vamos apenas eu e tu.
Porém, se olho à minha frente sobre a estrada branca, vejo sempre outro que
caminha ao teu lado. Quem é esse que vai sempre do outro lado?».
10. É o Senhor,
que vós entregastes à morte, mas que Deus ressuscitou, responde Pedro, falando
ao povo no dia de Pentecostes (Actos 2,14.22-33). Reside aqui, não o essencial
do anúncio, mas o anúncio essencial, sem glosas e sem filtros, que somos
chamados a fazer, com alegria e determinação (Actos 2,23-24). Este veio
fundamental percorre, como verdadeira filigrana, o Livro dos Actos dos
Apóstolos: 2,23-24.32.36; 3,15-16; 4,10; 5,30-31; 10,39-40; 13,28-30; 17,31;
25,19. Chamemos-lhe «primeiro anúncio», ou, como já se diz hoje, nesta
sociedade que já recebeu o «primeiro anúncio», mas que vive distante da seiva
do Evangelho, «segundo (primeiro) anúncio». É neste Senhor, continua Pedro, que
temos posta a nossa fé a nossa esperança, muito para além das coisas
corruptíveis, como prata e oiro (1 Pedro 1,17-21). «O Senhor sempre diante de
mim», cantamos hoje com o Salmo 16,8.
D. António Couto, in Mesa de Palavras
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