14 dezembro, 2012

De S. João da Cruz a um Carmelita Descalço



Que a paz de Jesus Cristo esteja sempre na sua alma, meu filho.
Recebi a carta […] em que me fala dos grandes desejos que Nosso Senhor lhe concedeu para trazer a sua vontade somente n’Ele, amando-O sobre todas as coisas. E pede-me alguns conselhos para o conseguir.

Alegro-me por Deus lhe haver dado tão santos desejos, e muito mais me alegrarei se os puser em prática. Para isso convém-lhe saber que todos os gostos, gozos e afectos nascem sempre na alma mediante a vontade e o querer das coisas que se lhe apresentam como boas, convenientes e agradáveis, por lhe parecerem agradáveis e preciosas. Segundo isto, encaminha para elas os apetites da vontade, espera possuí-las, goza-as enquanto as tem, teme perdê-las, e sofre quando as perde. Portanto, a alma vive perturbada e inquieta segundo o afecto e o gozo das coisas.

Para aniquilar e mortificar estes afectos de gostos acerca de tudo o que não é Deus, deve […] notar que […] nenhuma coisa suave e deleitável em que ela [vontade] se possa gozar e deleitar é Deus, porque, assim como Deus não pode ser apreendido pelas outras potências, também não pode ser objecto dos apetites e gostos da vontade. Assim como a alma neste mundo não pode saborear a Deus na Sua essência, assim também toda a suavidade e deleite que gozar […] não pode ser Deus; de igual modo, a vontade só pode gostar e desejar distintamente o que conhece […]. Se a vontade nunca saboreou a Deus como Ele é, nem O conhece sob qualquer apreensão do apetite, também não sabe como é Deus, nem o seu gosto o pode saber, nem o seu ser, apetite e gosto chegarão a saber desejar Deus, porque isso ultrapassa as suas capacidades. Portanto, nenhuma das coisas que a alma possa gozar distintamente é Deus. E, assim, para se unir a Ele, há-de a alma esvaziar-se e desprender-se de qualquer afecto desordenado de apetite ou gosto que tenha em relação ao que se possa gozar distintamente […], a fim de que, purificada e limpa de quaisquer gostos, gozos e apetites desordenados, se empregue totalmente, com todos os seus afectos, em amar a Deus. Porque, se de alguma maneira a vontade pode apropriar-se de Deus e unir-se a Ele, não é por qualquer meio apreensivo do apetite, mas pelo amor. Ora, como nenhum deleite, suavidade ou gosto apreendido pela vontade é amor, deduz-se que nenhum dos sentimentos saborosos pode ser meio apropriado para a vontade se unir a Deus; só o é a operação da vontade. A operação da vontade é muito diferente do seu sentimento: a operação une a Deus e termina n’Ele, que é amor; o sentimento e apreensão do seu apetite, fixa-se na alma como fim e termo. Os sentimentos só servem de motivo para amar, se a vontade quiser passar adiante e nada mais. Assim, os sentimentos saborosos não encaminham a alma para Deus, mas fixam-na em si mesmos, enquanto a operação da vontade, que é amar a Deus, faz com que a alma ponha só n’Ele o seu afecto, gozo, gosto, contentamento e amor, após ter deixado tudo para trás e amando-O sobre todas as coisas. Daí que, se alguém se persuade a amar a Deus pela suavidade que sente, já deixa para trás esta suavidade e põe o amor em Deus, a quem não sente. Se o pusesse na suavidade e gosto que experimentou, reparando e detendo-se nele, já estaria a pô-lo nas criaturas ou coisa delas […]. Se Deus é incompreensível e inacessível, a vontade não há-de pôr a sua operação de amor naquilo que pode tocar e apreender com o apetite, – a fim de a pôr em Deus –, mas naquilo que não pode compreender nem alcançar com ele. Desta maneira, a vontade fica a amar por certo e deveras ao gosto da fé, ou seja, vazia de seus sentimentos e às escuras de todos os que pode conceber com o entendimento do seu intelecto, acreditando e amando acima de tudo o que pode entender.

Portanto, muito insensato seria quem, ao faltar-lhe a suavidade e a consolação espiritual, pensasse que Deus lhe faltaria por isso; ou, ao experimentar gozo e consolação, julgasse que possuía a Deus por isso. Mas mais insensato seria se andasse a procurar esta suavidade em Deus, detendo-se a gozar nela; isso já não seria procurar a Deus com a vontade fundada em desnudez de fé e caridade, mas procurar o gosto e a suavidade espiritual, que é criatura, seguindo o seu gosto e apetite. Desta maneira, já não estaria a amar puramente a Deus […], porque, apegando-se e apoiando-se naquela criatura com o apetite, a vontade não se eleva acima dela até Deus, que é inacessível. É impossível à vontade chegar à suavidade e consolação da divina união […] se não for pela desnudez e vazio do apetite em qualquer gosto particular […]. 

[…] Na verdade, quando se põe o apetite nalguma coisa, a essa mesma coisa se reduz, porque fora de Deus tudo é apertado. Por isso, para a alma acertar no caminho para Deus e se unir com Ele, há-de ter a boca da vontade aberta só para Deus, vazia e sem nenhum pedaço de apetite, a fim de que Deus a encha e farte do seu amor e doçura; há-de viver com fome e sede só de Deus, sem querer satisfazer-se com mais nada, pois aqui não pode saborear Deus como Ele é; o que se pode saborear também é impedimento se, como digo, aí entrar o apetite. […]
Portanto, muito convém e importa […], se quiser gozar de uma grande paz na sua alma e chegar à perfeição, entregar toda a sua vontade a Deus, para assim se unir a Ele, e não a encher com as coisas vis e baixas da terra.

Que Sua Majestade o faça tão espiritual e santo como eu desejo.

Segóvia, 14 de Abril [de 1589].
Frei João da Cruz



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