«1. A Igreja Una e Santa é hoje de novo convidada e, por isso, se reúne (é reunida) num banquete de espanto e de alegria, para saborear o Vinho Bom (kalós) e Último, cuidadosamente guardado até Agora (héôs árti), mas Agora oferecido pelo Esposo verdadeiro, que é Jesus (João 2,1-11). O segredo deste vinho Bom e Último é conhecido dos que servem (diákonoi) (João 2,9b), mas o chefe-de-mesa (architríklinos) «não sabia ‘DE ONDE’ (póthen) era» (João 2,9a).
2. E, na verdade, aquele saber ou não ‘DE ONDE’ (póthen) era, aqui anotado pelo narrador, é a questão fundamental que atravessa o IV Evangelho, e aponta permanentemente para Deus. Provocação para uma sociedade indiferente, com saber, mas sem sabor, sem frio e sem calor, morna, à deriva, sem calafrios e sem Deus. E, todavia, já Nietzsche o dizia: «Ao homem que te pede lume para acender o cigarro,/ se o deixares falar,/ dez minutos depois pedir-te-á Deus». Entremos, pois, por esta auto-estrada repleta de sinalizações para Deus, pois ela vem de Deus, e por ela vem Deus, por amor, ao encontro dos seus filhos.
3. Em João 1,48, é Natanael que, atónito, pergunta a Jesus «‘DE ONDE’ (póthen) me conheces?». Em João 2,9, é o narrador que nos informa que o chefe-de-mesa «não sabia ‘DE ONDE’ (póthen) era» a água feita vinho. Em João 3,8, é Nicodemos que não sabe, acerca do Espírito, «‘DE ONDE’ (póthen) vem nem para onde vai». Em João 4,11, é a mulher da Samaria que não sabe ‘DE ONDE’ (póthen) tira Jesus a água viva. Em João 6,5-7, é Filipe que chumba no teste que lhe faz Jesus, ao confessor que não sabe ‘ONDE’ (póthen) ir comprar pão para dar de comer a umas trinta mil pessoas. Em João 7,27, as autoridades de Jerusalém confirmam que, «quando vier o Cristo, ninguém saberá ‘DE ONDE’ (póthen) Ele é». Em João 8,14, Jesus afirma, em polémica com os fariseus: «Eu sei ‘DE ONDE’ (póthen) venho; vós, porém, não sabeis ‘DE ONDE’ (póthen) venho». Em João 9,29, na cena da cura do cego de nascença, os fariseus afirmam acerca de Jesus: «Esse não sabemos ‘DE ONDE’ (póthen) é», ao que, no versículo seguinte (João 9,30), com viva ironia, o cego curado responde, apontando a cegueira deles: «Isso é espantoso: vós não sabeis ‘DE ONDE’ (póthen) Ele é; e, no entanto, Ele abriu-me os olhos!». Na narrativa do IV Evangelho, tudo isto conflui para a questão posta por Pilatos em João 19,9: «‘DE ONDE’ (póthen) és Tu?».
4. Demoremo-nos, pois, um pouco com o chefe-de-mesa, uma vez que é a ele que Jesus manda os servos levar o vinho novo (João 2,8). O chefe-de-mesa prova o vinho novo, e confessa a sua ignorância acerca da sua origem: de facto, «não sabia ‘DE ONDE’ era», diz-nos o narrador (João 2,9a). A sua pergunta é, portanto, esta: «‘DE ONDE’ é este vinho»? Estranho é que o seguimento do texto nos mostre que o chefe-de-mesa passe ao lado da sua própria pergunta. Ele, que não sabia, podia ter perguntado aos servos, que sabiam (João 2,9b), porque tinham recebido e executado as ordens de Jesus (João 2,7-8). Em vez de se dirigir a eles, o chefe-de-mesa opta, todavia, por se dirigir ao noivo. E em vez de formular a sua pergunta acerca da origem daquele vinho, acaba simplesmente por manifestar o seu espanto pelo estranho procedimento adoptado, contrário a todos os usos e costumes, de servir primeiro o vinho reles, deixando para o fim o vinho bom! (João 2,10).
5. É fácil constatar que esta figura do chefe-de-mesa nos é apresentada no papel de pivot no que se refere ao andamento da festa; em relação ao vinho novo e bom que lhe é levado pelos servidores, manifesta desconhecer a sua proveniência; prova-o, como lhe competia, mas não esboça qualquer vontade de querer saber mais acerca dele; limita-se a manifestar a sua estranheza pelo facto de o ritual antigo ter sido alterado. O elenco destes traços figurais leva-nos a concluir que a figura do chefe-de-mesa representa bem as autoridades judaicas tradicionais, mas também todos os senhores do mundo não sensíveis à novidade que é visível em Jesus.
6. Os servos, que recebem e cumprem as ordens de Jesus, que dão o vinho novo e bom a provar aos judeus tradicionais e a toda a humanidade, são os discípulos de Jesus, que sabem a proveniência de Jesus, e sabem também discernir o «significado» deste primeiro «sinal» (sêmeíon) que Jesus fez» (João 2,11).
7. «A mãe de Jesus estava lá», diz-nos logo de entrada o narrador (João 2,1). Sintomático que, tendo ela sido apresentada como «mãe de Jesus» por duas vezes (João 2,1 e 3), pouco depois Jesus a trate por «mulher» (João 2,4), e não por «mãe». Este singular tratamento por «mulher» em vez de «mãe» tem sido muitas vezes visto como ríspido, distante e nada afectuoso da parte de Jesus. O mesmo tratamento por «mulher», e não por «mãe», aparece no Calvário nos lábios de Jesus (João 19,26). Na verdade, esconde-se, neste tratamento por «mulher», um verdadeio tesouro. A «mulher» é muitas vezes na Escritura o símbolo do Povo de Deus, e, mais concretamente de Sião-Jerusalém personificada, como Esposa amada, Enlevo e Alegria de Deus, o Esposo (Isaías 54,5-7; 62,1-5), e como mãe embevecida dos filhos de Deus (Isaías 49,21; 60,1-4).
8. «Não têm vinho!», observa a mãe de Jesus, falando para Jesus (João 2,3). É uma observação de mãe atenta e de serva feliz, que está ali para amar e servir! A resposta de Jesus: «O que há entre mim e ti, mulher? Ainda não chegou a minha hora» (João 2,4), tem sido igualmente vista como uma resposta ríspida de Jesus à sua mãe. Na verdade, é uma daquelas frases que pode assumir duas valências opostas, conforme o tom de voz com que é dita. Tanto pode ser, de facto, uma resposta ríspida e de ruptura, como pode ser, ao contrário, uma resposta de grande deferência e carinho. É óbvio que aqui é uma resposta de grande deferência e terno amor filial de Jesus. É como se Jesus dissesse: «Mulher, grande mulher, mulher messiânica, que atravessa em contra-luz toda Escritura Santa, que trouxeste até aqui nos teus braços a Esperança de um povo, porque precisas de mo pedir? Tu sabes bem que Eu o faço, e é já». E a mãe de Jesus, nunca chamada Maria no IV Evangelho, entendeu bem esta resposta. Sinal disso é que diz para os servos: «Fazei tudo o que Ele vos disser!».
9. Como Jesus dirá mais tarde – e diz hoje para nós – também no contexto de um banquete, a Eucaristia, em que somos nós os convidados: «Fazei isto em memória de Mim!».
10. «Estava lá a mãe de Jesus», como «estavam lá seis talhas», grandes e vazias (João 2,6). Mãe e Mulher da esperança, talhas vazias, mas que serão cheias de esperança até ao cimo. Delas jorrará o vinho novo e bom, até agora guardado para nós. Tempo novo e pleno do Amor de Deus. É Ele que servirá o banquete de carnes suculentas e vinhos deliciosos (Isaías 25,6).
11. O banquete novo, Bom e Último do Reino de Deus, com o Vinho Bom e Último, até agora guardado na esperança, é agora cuidadosamente servido. Que saber e sabor é o nosso? Sabemos e saboreamos a Alegria do Banquete nupcial? Servimos para servir este Amor, esta Alegria? Não esqueçamos que é este o «terceiro Dia!» (João 2,1), que agrafa esta Alegria à Alegria nova da Ressurreição ao «terceiro Dia», «sinal» para a Glória e para a Fé (João 2,11).»
Dom António Couto, in Mesa de Palavras
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