11 maio, 2013

A entrada de Jesus Ressuscitado na vida de Paulo (III): Forma, linguagem e 3 relatos



Tendo notado os contrastes existentes entre o livro dos Actos e as Cartas paulinas na maneira de nos narrar este acontecimento, vamos agora tentar perceber, mais de perto, a forma, a linguagem e o porquê de três relatos no escrito lucano. Estaremos, pois, a dar resposta àquelas questões com que terminámos a reflexão anterior. Dissemos que para lhes responder fazia falta não descurar a intencionalidade do autor sagrado. Para ela, também olharemos. 
Lucas, quando se sente movido a redactar a sua obra, é conhecedor duma tradição que diz que o apóstolo, na sua ida a Damasco, tinha sido coroado com e vivido um certo acontecimento sobrenatural, e que alguém de nome Ananias havia tido uma função preponderante nele. Ao estar por dentro dessa tradição, o que ele faz é pegar nesses elementos e construir uma narração segundo a forma das chamadas “lendas de conversão”.
O que vinham a ser essas “lendas”? Eram relatos elaborados com um objectivo bem traçado, ou seja, mostrar como Deus, face a alguém que se apresentava como seu inimigo, era capaz de acabar por convertê-lo mediante sinais portentosos. Um exemplo dessas lendas é a conversão de Heliodoro, ministro do rei Seleuco IV da Síria (ler o segundo livro dos Macabeus, cap. 3). O que nos dá alguma segurança para afirmar que o nosso autor inspirado utiliza este modo convencional de dizer as coisas é que encontramos muitas outras lendas judias que narram da mesma maneira a conversão de alguma figura inimiga de Deus. Assim sendo, ficamos a saber, uma vez mais, que não devemos tomar como históricos os pormenores da conversão de S. Paulo, mas antes, como elementos que fazem parte dum determinado caixilho literário, que sempre que é utilizado, lá aparecem.
Mas porquê tanto interesse de S. Lucas na conversão do apóstolo, ao ponto de não só a engrandecer com pormenores, mas de a repetir nada menos que três vezes (Act 9,3-19; 22,6-16 e 26,12-18)? Porque o autor sagrado, ao longo da sua obra, quer demonstrar o cumprimento da profecia de Jesus que diz que a Palavra de Deus se estenderá por todo o mundo de então. Com efeito, ao princípio, Jesus aparece aos apóstolos e profere-lhes: “Ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo” (Act 1,8). E o que se entendia naquele tempo por “confins do mundo”? Era Roma, a capital do império.
Lucas desconhecia que algum dos doze apóstolos tivesse chegado até à capital. No seu escrito, Pedro, o porta-voz e cabeça do grupo, não chega a passar da Judeia e Samaria. João tão-pouco vai para além da Samaria. Tiago maior é morto cedo. Tiago menor nunca chega a sair de Jerusalém. Matias, substituto de Judas, deixa imediatamente de aparecer em cena após a sua eleição. Dos restantes apóstolos não temos nenhuma notícia.
Como demonstrar, pois, que a profecia de Cristo se realiza e que a Igreja se estende “até aos confins do mundo”? O nosso autor pôs-se a pensar e, por inspiração divina, chegou à conclusão de que a melhor maneira seria fazer recair sobre Paulo a realização desta missão. Mas ainda assim uma dificuldade se levantava: segundo Lucas, «apóstolo» era o que tinha conhecido pessoalmente Jesus e recebido d’Ele a tarefa de anunciar o Evangelho (Act 1,21-26); algo que não havia ocorrido com Paulo. Para que não restassem, pois, nenhumas dúvidas de como Paulo é o que realiza a missão de chegar a Roma – missão entregue, na verdade, aos apóstolos – Lucas, no quadro da sua conversão a caminho de Damasco, pinta-o a receber do próprio Jesus esse mesmo encargo. E fala nele por três vezes ao longo do livro, no seu itinerário para Roma, a fim de que não haja mesmo dúvidas.
Já agora, na Bíblia há uma linguagem convencional para exprimir as experiências que as pessoas têm de Deus: a imediatez, o brilho, a luz refulgente, o temor, por parte do ser humano, a missão directa, da parte de Deus. Podeis verificar se nos três textos de Lucas se pode aplicar este esquema.
Há aí um “diálogo de aparição”, muito comum no Antigo Testamento (Ex 3,2-10; 1Sm 3,4-14), que é utilizado oficialmente pelos escritores sagrados sempre que querem narrar a aparição de Deus (ou esse encontro extraordinário, místico, arrebatador, transformante, diferente dos de cada dia…) a alguma pessoa. Esse diálogo possui, na maioria das vezes, quatro elementos: o nome da pessoa é referido por duas vezes (Saulo, Saulo!); uma pergunta muito curta do interpelado (Quem és Tu, Senhor?); o Senhor que se auto-apresenta (Eu sou Jesus, a quem tu persegues) e a missão (Ergue-te, entra na cidade).
Apoderando-se desta linguagem, Lucas quis apresentar e confirmar uma coisa: que esse tal encontro ou experiência grandiosa de Cristo Ressuscitado e com Cristo Ressuscitado foi um acontecimento verdadeiramente real e não uma mera alucinação de Paulo.
Pe. Vasco

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