Tendo notado os
contrastes existentes entre o livro dos Actos e as Cartas paulinas na maneira
de nos narrar este acontecimento, vamos agora tentar perceber, mais de perto, a
forma, a linguagem e o porquê de três relatos no escrito lucano. Estaremos,
pois, a dar resposta àquelas questões com que terminámos a reflexão anterior.
Dissemos que para lhes responder fazia falta não descurar a intencionalidade do
autor sagrado. Para ela, também olharemos.
Lucas, quando se
sente movido a redactar a sua obra, é conhecedor duma tradição que diz que o apóstolo,
na sua ida a Damasco, tinha sido coroado com e vivido um certo acontecimento
sobrenatural, e que alguém de nome Ananias havia tido uma função preponderante
nele. Ao estar por dentro dessa tradição, o que ele faz é pegar nesses
elementos e construir uma narração segundo a forma das chamadas “lendas de
conversão”.
O que vinham a ser
essas “lendas”? Eram relatos elaborados com um objectivo bem traçado, ou seja,
mostrar como Deus, face a alguém que se apresentava como seu inimigo, era capaz
de acabar por convertê-lo mediante sinais portentosos. Um exemplo dessas lendas
é a conversão de Heliodoro, ministro do rei Seleuco IV da Síria (ler o
segundo livro dos Macabeus, cap. 3). O que nos dá alguma segurança para
afirmar que o nosso autor inspirado utiliza este modo convencional de dizer as
coisas é que encontramos muitas outras lendas judias que narram da mesma
maneira a conversão de alguma figura inimiga de Deus. Assim sendo, ficamos a
saber, uma vez mais, que não devemos tomar como históricos os pormenores da
conversão de S. Paulo, mas antes, como elementos que fazem parte dum
determinado caixilho literário, que sempre que é utilizado, lá aparecem.
Mas porquê tanto
interesse de S. Lucas na conversão do apóstolo, ao ponto de não só a
engrandecer com pormenores, mas de a repetir nada menos que três vezes (Act 9,3-19; 22,6-16 e 26,12-18)? Porque
o autor sagrado, ao longo da sua obra, quer demonstrar o cumprimento da
profecia de Jesus que diz que a Palavra de Deus se estenderá por todo o mundo
de então. Com efeito, ao princípio, Jesus aparece aos apóstolos e profere-lhes:
“Ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis
minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins
do mundo” (Act 1,8). E o que se
entendia naquele tempo por “confins do mundo”? Era Roma, a capital do império.
Lucas desconhecia que
algum dos doze apóstolos tivesse chegado até à capital. No seu escrito, Pedro,
o porta-voz e cabeça do grupo, não chega a passar da Judeia e Samaria. João
tão-pouco vai para além da Samaria. Tiago maior é morto cedo. Tiago menor nunca
chega a sair de Jerusalém. Matias, substituto de Judas, deixa imediatamente de
aparecer em cena após a sua eleição. Dos restantes apóstolos não temos nenhuma
notícia.
Como demonstrar,
pois, que a profecia de Cristo se realiza e que a Igreja se estende “até aos
confins do mundo”? O nosso autor pôs-se a pensar e, por inspiração divina,
chegou à conclusão de que a melhor maneira seria fazer recair sobre Paulo a
realização desta missão. Mas ainda assim uma dificuldade se levantava: segundo
Lucas, «apóstolo» era o que tinha conhecido pessoalmente Jesus e recebido d’Ele
a tarefa de anunciar o Evangelho (Act
1,21-26); algo que não havia
ocorrido com Paulo. Para que não restassem, pois, nenhumas dúvidas de como
Paulo é o que realiza a missão de chegar a Roma – missão entregue, na verdade,
aos apóstolos – Lucas, no quadro da sua conversão a caminho de Damasco, pinta-o
a receber do próprio Jesus esse mesmo encargo. E fala nele por três vezes ao longo
do livro, no seu itinerário para Roma, a fim de que não haja mesmo dúvidas.
Já agora, na Bíblia
há uma linguagem convencional para exprimir as experiências que as pessoas têm
de Deus: a imediatez, o brilho, a luz refulgente, o temor, por parte do ser
humano, a missão directa, da parte de Deus. Podeis verificar se nos três textos
de Lucas se pode aplicar este esquema.
Há aí um “diálogo de
aparição”, muito comum no Antigo Testamento (Ex 3,2-10; 1Sm 3,4-14), que é utilizado oficialmente pelos
escritores sagrados sempre que querem narrar a aparição de Deus (ou esse
encontro extraordinário, místico, arrebatador, transformante, diferente dos de
cada dia…) a alguma pessoa. Esse diálogo possui, na maioria das vezes, quatro
elementos: o nome da pessoa é referido por duas vezes (Saulo, Saulo!); uma
pergunta muito curta do interpelado (Quem és Tu, Senhor?); o Senhor que se
auto-apresenta (Eu
sou Jesus, a quem tu persegues) e a missão (Ergue-te, entra na cidade).
Apoderando-se desta
linguagem, Lucas quis apresentar e confirmar uma coisa: que esse tal encontro
ou experiência grandiosa de Cristo Ressuscitado e com Cristo Ressuscitado foi um
acontecimento verdadeiramente real e não uma mera alucinação de Paulo.
Pe. Vasco
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