24 novembro, 2013

Festa de Cristo Rei



1. A «Festa de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei» foi instituída pelo Papa Pio XI, em 11 de Dezembro de 1925, com a Carta Encíclica Quas Primas. Os tempos apresentavam-se sombrios e turvos e os céus nublados como os de hoje, e Pio XI, homem de acção, que já tinha fundado a Acção Católica em 1922, instituiu então esta Festa com o intuito de promover a militância católica e ajudar a sociedade a revestir-se de valores cristãos. A Festa de Cristo Rei era então celebrada no último Domingo de Outubro. A reorganização da Liturgia no pós-Concílio passou esta Festa para o último Domingo do Ano Litúrgico, com o título de «Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo».
 2. Antes de mais, o título de Rei, com que hoje celebramos o único Senhor da nossa vida. Pode parecer um título ultrapassado e com forte conotação ideológica, que poria Jesus ao nível dos senhores ricos e poderosos deste mundo. Para não resvalarmos para equívocos e terrenos movediços, convém anotar desde já a descrição que o próprio Jesus faz dos Reis: «Os Reis das nações, diz Jesus, dominam sobre elas» (Lucas 22,25). E a sua advertência: «Não seja assim entre vós» (Lucas 22,26). E, todavia, Jesus diz-se Rei, confirmando, neste domínio, as suspeitas de Pilatos (Marcos 15,2; João 18,37).
 3. Para sabermos o que é que Jesus tem em vista quando se afirma como Rei, é preciso saber como é que a Escritura traça o perfil do Rei. É como quem pinta um quadro, ou melhor, dois: um díptico. No primeiro quadro, o Rei é alguém muito próximo de Deus, completamente nas mãos de Deus, sempre atento à sua Palavra, de modo que deve ter, para seu uso pessoal, uma cópia da Lei de Deus, feita pela sua própria mão, para não poder dizer que não entende a letra, e deve lê-la todos os dias, nada fazendo por sua conta, mas sempre e só de acordo com a Palavra de Deus (Deuteronómio 17,18-19). No segundo quadro, que completa o primeiro, formando um díptico, o Rei é alguém muito próximo do seu povo, sempre atento ao seu povo, em ordem a levar-lhe a prosperidade, o bem-estar, a saúde, a paz, a alegria, a felicidade, a salvação. Aí está, então, o retrato completo de Jesus Cristo como Rei: sempre pertinho de Deus, sempre pertinho de nós.
 4. Tanta e quase indescritível riqueza a de um Deus, sentado no seu trono de Luz, mas que Vem, como um Filho do Homem, com o domínio novo, frágil e forte, do Amor: «Aquele que nos ama» (Apocalipse 1,5). Da lição do Livro de Daniel 7,13-14 e respectivo contexto, vê-se bem que todos os nossos impérios prepotentes e ferozes, por mais fortes que pareçam, caem face à doçura da Palavra do Filho do Homem, que dissolve no Amor as nossas raivas e violências, manifestações das bestas que nos habitam. O Filho do Homem vence, sem combater, este combate. É assim que caem as quatro bestas ferozes que sobem do mar (Daniel 7), símbolo da confusão e do mal, que deixará naturalmente de existir (Apocalipse 21,1).
 5. O domínio do Filho do Homem que nos ama, o domínio do Amor é Primeiro e Último (Apocalipse 1,8). Entre o Primeiro e o Último instala-se o penúltimo, que é o domínio velho e podre da violência das bestas ferozes que nos habitam. O Bem é de sempre e é para sempre. É Primeiro e é Último. O Bem não começou, portanto. O que começou foi o mal que se foi insinuando nas pregas do nosso coração empedernido. Mas o que começa, também acaba. Os impérios da nossa violência, malvadez e estupidez caem, imagine-se, vencidos por um Amor que é desde sempre e para sempre, e que vence, sem combater, a nossa tirania e prepotência!
 6. Entenda-se bem que tem de ser sem combater. Porque, se combatesse, usaria os nossos métodos, e apenas aumentaria a violência. É assim que Jesus atravessa as páginas dos Evangelhos e da nossa história, entregando-se por Amor à nossa violência, abraçando-a e, portanto, dissolvendo-a e absorvendo-a, e é só assim que a absolve. É assim que o Amor Reina, nos Salva, Justifica, Perdoa e Recria. Os Chefes dos Judeus, os Soldados e Pilatos representam os impérios envelhecidos, podres e caducos da nossa violência e estupidez. O Reino do Filho do Homem não pode, na verdade, ser daqui (João 18,33-37). Se fosse daqui, apenas aumentaria a espiral da mentira e da violência. É de Amor novo e subversivo que se trata.
 7. Aí está a página divina deste Último Domingo do Ano Litúrgico, Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo: Lucas 23,35-43. Texto espantoso. É preciso vir um pouco atrás buscar o fio de sentido deste imenso texto. Diz, na verdade, Lucas 23,32 que «Eram conduzidos também com Ele outros dois malfeitores para serem executados». Sim, o texto diz, com espantosa precisão teológica, «outros dois malfeitores». Ao dizer «outros dois malfeitores», o texto está a dizer que Jesus, o Justo, é também um malfeitor! Aí está o Livro a abrir-se perante os nossos olhos atónitos. O quarto Canto do Servo do Senhor já dizia que o Servo Justo «Foi contado entre os malfeitores» (Isaías 53,12). Sim, Ele é um de nós! Não passa ao nosso lado, mas abraça-nos e absorve os nossos males.
 8. Ouve-se depois um tema por três vezes repetido e martelado: «Salva-te a ti mesmo!» (Lucas 23,35.37.39), na boca dos chefes, dos soldados, de um dos malfeitores. Os chefes vêem um falso deus, os soldados um falso rei, o malfeitor um falso messias. Tudo ídolos que vamos usando a nosso bel-prazer, sem sequer repararmos nisso. O outro malfeitor é o primeiro teólogo da Cruz. Não interroga aquela Cruz; deixa-se interrogar por ela. E avança um pedido imenso: «Jesus, lembra-te de mim quando vieres com o teu Reino!» (Lucas 23,429). De notar que estas palavras imensas, que devíamos repetir muitas vezes, são cantadas pelo povo no momento da Comunhão, no Rito grego. E Jesus responde, para imenso espanto nosso: «Hoje estarás comigo no paraíso» (Lucas 23,43). Aos sarcásticos interrogadores da Cruz, Jesus não deu qualquer resposta. Este Hoje entala-nos no tempo, sendo uma permanente provocação que nos faz o Evangelho de Lucas. Este é o oitavo Hoje que encontramos neste Evangelho. Eis a sequência: Lucas 2,11; 4,21; 5,26; 19,5; 19,9; 22,34; 22,61; 23,43.
 9. Entenda-se ainda que este tempo escandaloso da Cruz é o tempo da Graça deixado em suspenso em Lucas 4,13b, no final do grande texto das tentações de Jesus na sua condição filial, baptismal, em que o diabo, também por três vezes, ia dizendo: «Se és o Filho de Deus…». O narrador termina o episódio, dizendo que «o diabo se afastou dele até ao kairós, o tempo estabelecido» por Deus. Sem equívocos agora: o kairós de Deus, a torrente da Palavra de Deus que solicita a nossa resposta, é a Cruz!
 10. Entenda-se melhor. Um «malfeitor» é alguém cuja profissão é, como o nome diz, «fazer o mal». Uma sociedade em que o usual é «fazer o mal» é uma sociedade violenta. E numa sociedade assente sobre a violência, a alternativa é: vencer ou ser vencido, matar ou ser morto. Neste tipo de sociedade, todos nós escolhemos preventivamente a primeira opção. Nem sequer será por mal, mas para nos salvarmos a nós mesmos, cada um de nós faz preventivamente o mal que pode: o ladrão e o banqueiro, o comerciante e o operário, o médico e o barbeiro, o patrão e o empregado, o padre e o assaltante, o benfeitor e o delinquente. Cada um, com os meios que tem, pensa e põe em primeiro lugar o seu caso particular. Mas vai saltando à vista que, se Jesus seguisse a nossa lógica de se salvar a si mesmo, não nos salvaria a nós, porque teria, não de assumir, abraçar, sorver e sofrer a nossa violência e o nosso pecado, mas de se posicionar contra nós!
 11. Vem, Senhor Jesus! Ilumina com a tua Luz nova as trevas, as pregas e as pedras da calçada do nosso coração empedernido. Reina sobre nós, Salva-nos, Justifica-nos, Perdoa-nos, Recria-nos. Faz-nos outra vez à tua Imagem. Dissolve a besta brava que há em nós e que, à imagem de Caim, não fala, mas trucida e come o outro. Bem visto por Judas na sua pequena Carta, infelizmente pouco lida e meditada: «Aqueles que seguem o caminho de Caim são como animais sem palavra» (Judas 10-11).
 12. «Jesus, lembra-te de mim quando vieres com o teu Reino».

D. António Couto, in Mesa de Palavras

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