30 novembro, 2013

Relações



Passei todo o dia de ontem numa grande soledade. Assim, a não ser quando comunguei, não fez em mim nenhum efeito ser dia da Ressurreição. Ontem, à noite, estando com todas, cantaram umas coplas, dizendo como o viver sem Deus era custoso de sofrer. Como estava já com mágoa, foi tanta a operação que em mim fizeram, que as mãos se me começaram a entorpecer, e não houve resistência possível.  Pois, assim como saio de mim pelos arroubamentos de gozo, da mesma maneira a alma suspende-se pela grandíssima pena, ficando alheada. Até hoje eu não tinha ainda compreendido isto. Até a alguns dias a esta parte, parecia-me não ter tão grandes ímpetos como costumava. Agora parece-me que a causa é isto que tenho dito, eu nem sei se pode ser, pois dantes a pena não chegava a fazer-me sair de mim e, como é tão intolerável e eu estava em meus sentidos, fazia-me dar grandes gritos sem eu o poder evitar. Agora, como tem crescido, chegou a termos deste trespassamento e entendo melhor o que Nossa Senhora teve, porque até hoje, como digo, não o tenho enten­dido. Ficou tão quebrantado o corpo que, ainda hoje, escrevo isto com bastante custo, pois ficam como desconjuntadas as mãos e com dor.

 Dir-me-á, V. Mercê, quando me vier ver, se pode haver este alhea­mento causado por pena e se o que sinto é tal como é, ou se me engano.

 Até esta manhã estive com esta pena e, estando em oração, tive um grande arroubamento: Parecia-me que Nosso Senhor me tinha levado o espírito até junto de Seu Pai e Lhe dizia: «Esta, que Me deste, Eu Te dou», e que me chegava a Si. Isto não é coisa imaginária, mas com uma grande certeza e uma delicadeza tão espiritual, que de todo não se sabe dizer. Disse-me algumas palavras que não me recordo; de mercê eram algumas. Durou algum tempo o ter-me junto de Si.

Como V. Mercê se foi ontem embora tão depressa, não ficando nem sequer o necessário para eu me poder consolar – pois bem vejo as muitas ocupações que tem e como são mais necessárias – fiquei, durante um bocado, com pena e tristeza. Como eu já sentia a soledade de que falei, ela ajudou a isso; e, como não me parece estar apegada a criatura alguma da terra, deu-me certo escrúpulo, temendo não começasse eu a perder esta liberdade. Isto foi ontem à noite. E, hoje, Nosso Senhor respondeu-me e disse-me que não me maravilhasse: que, assim como os mortais desejam companhia para comunicar seus contentamentos sensíveis, assim a alma deseja – quando há quem a entenda – comunicar os seus gozos e penas e se entristece por não ter com quem. Disse-me: «Ele, agora, vai bem e agradam-Me as suas obras».

Como Ele esteve algum tempo comigo, recordei-me de ter dito a V. Mercê que passavam depressa estas visões. Disse-me então o Senhor que havia diferença entre estas e as imaginárias e que não podia haver regra certa nas mercês que nos fazia, porque umas vezes convinha de uma maneira e outras de outra!

Depois de comungar, parece-me clarissimamente, assentou-se junto de mim Nosso Senhor e começou a regalar-me com grandes consolações. Disse-me entre outras coisas: «Aqui me vês, filha, pois sou Eu; mostra tuas mãos». Parecia-me que me pegava nelas e as chegava a Seu lado; disse: «Olha as Minhas chagas; não estás sem Mim. A brevidade da vida passa».
Por certas coisas que me disse, entendi que, depois que subiu ao Céu, nunca baixou à terra, a não ser no Santíssimo Sacramento, a comunicar com alguém.

Disse-me que, em ressuscitando, fora ver Nossa Senhora, que tinha já grande necessidade, pois a pena a tinha tão absorta e trespassada, que não tornou logo a si para gozar daquele gozo e tinha estado muito tempo com Ela, o que havia sido preciso, até a consolar.  Por isso entendi esse outro trespassamento que sofro, mas quão diferente. Qual não devia ser o da Virgem!

Santa Teresa R 15, Fevereiro de 1571, Salmanca

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