1. «Para vós, Senhor,
elevo a minha alma» (Salmo 25,1). Antífona do Cântico de Entrada que inaugura a
celebração eucarística do Advento, do Ano litúrgico, do Ano inteiro. Aponta a
atitude a assumir pela Assembleia fiel e orante: a oblação permanente, a oração
constante. Para que esta atitude não fique esquecida, mas tome verdadeiramente
conta de nós, a mesma «subida» espiritual é cantada com esfuziante alegria no
Salmo Responsorial (122). Extraordinário pórtico de entrada no Advento e no
novo Ano litúrgico. Belíssima forma de viver, elevando para Deus a nossa vida:
a oração é a nossa vida! A nossa vida em ascensão e oração permanente,
sacrifício de suave odor, incenso puro subindo para o nosso Deus. Sempre. O
Evangelho dirá com a mesma energia e alegria: «Estai atentos», «Vigiai»,
«Compreendei», «Estai preparados», «Sabei o dia», «Não aconteça que não deis
por nada!» (Mateus 24,37-44). Vida levantada, rosto erguido para Deus. É o
gesto do justo justificado por Deus (Job 22,26). Página
em branco, Primeira e Última, que podemos apresentar a Deus neste início de
Advento e de Ano litúrgico. É de Deus a palavra e a escrita que não passa.
2.
Curiosamente a lição do Evangelho não condena a malvadez e a violência das
pessoas, mas a sua indiferença, anestesia e sonolência («não dar por nada»).
«Vigiar», «Estar atentos» significa não se deixar enterrar na lama dos caminhos
banais e fúteis deste tempo dormente, e S. Paulo mostra que a busca desenfreada
do sucesso e das falsas soluções da droga, da devassidão, da embriaguez, das
rixas, dos ciúmes é uma teia que nos enreda e não nos deixa ver bem, belo e
bom. Não nos deixa, portanto, ver Cristo, o mais belo dos filhos dos homens
(Salmo 45,3), «belo a dar a vida e belo a retomá-la, belo na Cruz, belo no
sepulcro, belo no céu» (Santo Agostinho). Andamos sempre tão atarefados com
inúmeros afazeres, campos, bois, negócios, casamentos, que ficamos com o
«coração pesado» e insensível, incapaz de ver o Filho-do-Homem-que-vem, a
qualquer hora, nos nossos irmãos mais pequeninos! Ora, o Advento é o Filho do
Homem que vem, para que nós o acolhamos. Se o acolhermos, saímos fora da teia
dos nossos afazeres que nos sufoca, o penúltimo, e entramos no mundo
maravilhoso do Último, do Amor, da Liberdade, que rompe as nossas teias e
cadeias.
3. O escritor argentino Jorge Luis Borges
deixou-nos versos densos como estes, acentuando a importância e a intensidade
de cada momento da nossa vida a não desperdiçar: «Não há um instante que não
esteja carregado como uma arma»; «Em cada instante o galo pode ter cantado três
vezes»; «Em cada instante a clépsidra deixa cair a última gota». E o poeta
brasileiro Vinícius de Moraes escreveu assim num belíssimo poema: «A coisa mais
divina/ Que há no mundo/ É viver cada segundo/ Como nunca mais». É assim,
sempre vigilantes, amantes e esperantes, sempre à escuta e à espera de alguém,
com Amor imenso e intenso, que rasga o próprio tempo, que devemos encher todos
os nossos instantes, como se fosse a primeira vez, como se fosse a última vez.
Tudo no Evangelho é decisivo: cada passo conta, cada gesto conta, cada palavra
conta, cada copo de água conta!
4.
Átrio de um tempo novo, habitado, «carregado» de justiça e de bondade. Obra de
Deus no nosso mundo. E só dele. Obra terna, tenra e nova, como um «rebento» de
um jovem casal ou de uma planta. Sinal de Primavera no meio da invernia e da
lama em que nos vamos atolando, ensonados e enlatados, sem sequer darmos por
isso. É, portanto, mesmo preciso que Ele venha e que nos acorde e nos levante
da nossa letargia com novas pautas e novos acordes musicais! E que nos dê nomes
novos a nós, às nossas cidades, às nossas escolas, aos nossos hospitais, às
nossas ruas! Up! Up! Up! Luz nova lá no alto a atrair os nossos olhos
embotados. Instrução nova de Deus para todos os povos, armas transformadas em
relhas de arado, flores brancas em mãos ensanguentadas (Isaías 2,1-5).
5.
E aí está S. Paulo, no final da sua carreira, a escrever desde Corinto aos
Romanos (13,11-14). E aí está também o buscador Agostinho. Na sua intensa busca
da verdade, foi de Tagaste para Cartago, para Milão. Homem inquieto, no pólo
oposto do coktail da tranquilidade e consolo, servido pela New Age ou Next Age,
e de acordo com a advertência de Julien Green: «Enquanto estivermos inquietos,
podemos estar tranquilos». No princípio do Outono de 386, angustiado e
inquieto, Agostinho (Confissões, Livro VIII, 12) sai para o jardim da sua casa,
em Milão, e chora amargamente, sentado debaixo de uma figueira. Ouve então uma
criança que, na casa vizinha, cantarolava uma estranha letra: «Toma e lê!»,
«toma e lê!». Agostinho apercebeu-se de que não era normal uma criança trautear
uma canção com uma letra assim. Foi, por isso, levado a compreender que bem
podia ser um recado de Deus para ele. Entrou em casa, desenrolou à sorte as
Cartas de S. Paulo que tinha sobre a mesa, e leu: «Não em orgias e bebedeiras,
não em devassidão e libertinagem, não em rixas e ciúmes, mas revesti-vos do
Senhor Jesus Cristo e não presteis atenção à carne através da concupiscência»
(Rm 13,13b-14).
6. Nesse dia e nessa hora, nasceu Santo
Agostinho. Hoje podes nascer tu também, meu irmão do tempo novo do Advento.
Mãos à obra, e conta sempre com a graça de Deus: «Segundo a graça que Deus me
deu, como bom arquitecto, lancei o fundamento, mas é outro que constrói por
cima. Mas cada um veja como constrói. Quanto ao fundamento, ninguém pode pôr
outro diferente do que foi posto: Jesus Cristo. Se alguém, sobre esse
fundamento, constrói com ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno ou palha,
a obra de cada um será posta em evidência» (1 Coríntios 3,10-13).
D. António Couto, in Mesa de Palavras
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