1.
«Fazendo memória da Toda Santa, imaculada, sobrebendita, gloriosa Senhora
nossa, Mãe de Deus e Sempre Virgem Maria, juntamente com todos os Santos,
consagramo-nos nós e toda a nossa vida a Cristo Deus». Assim se conclui, no
rito bizantino, a oração que abre a celebração deste Dia, à qual a assembleia
responde: «a Ti, Senhor!». É o «fiat», o «faça-se» dito por Maria (Lucas 1,38),
a Serva do Senhor, a ecoar também no nosso coração e a brotar dos nossos
lábios. É o eco daquele «faça-se» de Deus na primeira página da Escritura Santa
a ecoar no coração de Maria e no nosso também. É aquele «Sim» imenso que
atravessa as primeiras 452 palavras da Escritura Santa (Génesis 1,1-2,4a), onde
não se lê um único «Não». «Tudo, na verdade, foi feito pelo Verbo» (João 1,3),
«n’Ele foram criadas todas as coisas» (Colossenses 1,16), e o Verbo incarnado,
Jesus Cristo, no dizer do Apóstolo, «foi sempre Sim, e nunca não» (2 Coríntios
1,19). Aí está a filigrana que faz vibrar a melodia e mostra a verdadeira
harmonia da Escritura. Imensa sintonia a ecoar hoje em tantos corações! As
partituras desta música divina vêm hoje de Lucas 1,26-38, Génesis 3,9-15.20,
Romanos 15,4-9 e do Salmo 98(97).
2. É bom sabermos e sentirmos que as Igrejas
do Oriente e do Ocidente, embora divididas entre si, nos dias 8 e 9 de Dezembro
(8 no Ocidente e 9 no Oriente), nove meses antes da Festa da sua Natividade (8
de Setembro), juntam as suas vozes em maravilhosa harmonia para celebrar a Mãe
de Deus no singular privilégio da Conceição Imaculada da sua humanidade.
3. Bem sabemos, além disso, que os Coptos
dedicam a Maria o inteiro mês de Kiahq, que coincide mais ou menos com o nosso
mês de Dezembro, e os Caldeus, os Antioquenos e os Maronitas celebram, também
nesta altura do ano, e durante pelo menos quatro Domingos, o tempo do chamado
Sûbbarâ ou «Anunciação», Vinda de Deus ao nosso mundo, notícia após notícia,
para abrir as nossas trincheiras e fazer nascer em nós um mundo novo, um
cântico novo.
4. «Onde estás?», pergunta o Deus-Que-Vem por
amor ao encontro da sua criatura dilecta (Génesis 3,9). «Tive medo e
escondi-me», respondemos nós, amedrontados (Génesis 3,10). A narrativa exemplar
de Génesis 3, que hoje lemos, desvenda todas as nossas inúteis estratégias de
defesa, e faz-nos ver como nós nos escondemos de nós mesmos e de Deus, e como
alijamos facilmente as nossas culpas sobre os outros. Correcto, limpo,
terapêutico, salvador, era assumirmos e confessarmos humildemente as nossas
culpas. Mas não. Fugimos, escondemo-nos de nós, e respondemos: «Foi a mulher»,
«foi aquele», «foi aquela», e, em última análise, «foste Tu, foste Tu, Deus»
(Génesis 3,12), porque foste Tu que me deste a maravilha de um irmão, de uma
irmã, e foi esse irmão dado por Ti, essa irmã dada por Ti, que me deu a comer
aquele fruto, fruto de um furto! És Tu, portanto, e em última análise, o
culpado. Aí estamos nós a fugir de nós mesmos, e a acusar os outros! E se não
assumimos as nossas culpas, como podemos corrigir os nossos erros, e como
podemos chegar a descobrir a realidade humana e divina do perdão? Sim, porque
quando nos escondemos de Deus, estamos também a esconder Deus e os seus dons, a
Alegria, o Amor, o Perdão.
5. É usual dizer-se que esta conhecida página
do Livro do Génesis narra a entrada do mal no coração do homem e no mundo. Mas
do que se trata mesmo é da importância da relação do homem com Deus, e diz-nos
que o mal entra no mundo quando o homem quebra esta relação e se desliga de
Deus. Por isso também, daí para a frente, a Escritura Santa ocupa-se em mostrar
que a resposta a dar ao mal não é apenas o bem, mas o santo. Entenda-se: não o
homem fechado sobre si, autossuficiente e autorreferencial, mas completamente
aberto e voltado para Deus, de quem por amor tudo recebe e se recebe. E
completamente voltado para os outros, a quem tudo entrega por amor. Como Maria,
a figura deste luminoso Dia.
6. Em perfeita sintonia, aí está o Apóstolo a
dizer o fundamental: «que Deus nos escolheu para sermos santos» (Efésios 1,4) e
para nos dar, através de Jesus Cristo, a nossa verdadeira identidade, a
filiação divina (hyiothesía) (Efésios 1,5). Entrando assim, por graça, na casa
de Deus (Efésios 4,19), andaremos sempre na sua presença. Ele é o Deus Santo que
nos santifica. Escutemos também a melodia admirável em que o Apóstolo nos faz
entrar na Carta aos Romanos 15,4-9. Como seria belo um mundo pautado por uma
verdadeira fraternidade em que todos vivêssemos sob o impulso e o alento
carinhoso e criador de Deus. Na verdade, todos respiramos o mesmo alento, que o
texto grego diz com o belo termo composto homothymadón (Romanos 15,6), que
junta homós [= mesma] e thymós [= alma], sendo que thymós deriva de thýô [=
soprar]. E que mundo maravilhoso surgiria, rompendo a crosta do egoísmo e da
dureza de coração, se «nos acolhêssemos uns aos outros, como Cristo nos acolheu
a nós» (Romanos 15,7). Aí está então a comunidade humana irmanada e reunida,
porque todos recebemos de Deus o mesmo alento, o mesmo sopro criador (Génesis
2,7), e com uma só boca (en henì stómati) e a uma só voz cantamos os louvores
do nosso Deus (Romanos 15,6), autor de tantas maravilhas (Êxodo 15,11)! Esta
linguagem e esta harmonia enchem por inteiro a comunidade primitiva (Actos
1,14; 2,46; 5,12).
7. O ícone desta santidade, neste mundo, é
Maria, no grande texto da Anunciação (Lucas 1,26-38). Vale a pena contemplá-la
demoradamente, como fazem as Igrejas do Oriente e do Ocidente. Ao contrário de
nós, Maria, visitada por Deus, não foge, não se esconde de si mesma, não se
esconde de Deus, não esconde Deus na sua vida. Tinha consagrado a Deus toda a
sua vida, a sua virgindade. Não sendo usual no mundo judaico do seu tempo, esta
maneira de viver está, porém, solidamente documentada por parte de homens e mulheres.
Ao contrário do homem do Génesis e desta sociedade em que vivemos, Maria não se
esconde de Deus nem esconde Deus. Expõe-se, na sua verdade e simplicidade, ao
imenso clarão de Deus. É assim que se expõe a Deus e que expõe Deus, recebendo
e aceitando com amor intenso a sua nova Vocação que lhe vem de Deus. Maria vai
ser a Mãe, não de um filho, mas do Filho há muito ansiado, esperado e anunciado
nas páginas da Escritura Santa Antiga. É o Filho de Deus, totalmente
consubstancial a Deus, e é o Filho de Maria, totalmente consubstancial à sua
Mãe. Santa Maria, Mãe de Deus.
8. Por isso, «Alegra-te, Maria» [= «Chaîre
Maria»; «Ave Maria»], «não tenhas medo», «o Senhor está contigo» (Lucas 1, 28 e
30). Alguns anos mais tarde, as mulheres que vão ao túmulo de Jesus ouvirão
também a mesma música divina: «Alegrai-vos», «não tenhais medo» (Mateus 28,5 e
9). E nós, Assembleia Santa que hoje se reúne para celebrar os mistérios do seu
Senhor e também de Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, estamos também
permanentemente a ouvir esta divina melodia. Portanto, irmãos amados em Cristo,
Alegrai-vos, não tenhais medo, o Senhor está no meio de nós!
9. «Eis a serva do Senhor; faça-se em mim
segundo a tua Palavra» (Lucas 1,38). Deus chama, mas não impõe. A Maria, e a
cada um de nós. Podemos sempre aceitar Deus ou esconder-nos de Deus. Deixar
Deus entrar, ou fechar-lhe a porta. Maria aceitou, e, por isso, todas as
gerações a proclamarão Bem-aventurada (Lucas 1,48). É o que estamos hoje e aqui
a fazer: Feliz és tu, Maria, pioneira de um mundo novo, porque acreditaste em
tudo quanto te foi dito da parte do Senhor (Lucas 1,45)! Feliz também aquele
que ouve a Palavra de Deus e a põe em prática (Lucas 11,28)!
10. Memorial desta beleza incandescente é a
Basílica da Anunciação, em Nazaré. Esta grandiosa Basílica, em três planos, foi
inaugurada em 25 de Março de 1969, e foi visitada, ainda as obras estavam em curso,
em 1964, pelo Papa Paulo VI. Escavações feitas antes desta grandiosa construção
puseram a descoberto, e podem ver-se ainda hoje, os majestosos pilares de uma
Catedral levantada em 1099, pelo príncipe cruzado Tancredo, bem como o
pavimento em mosaico de uma igreja bizantina, que pode ser datada do ano 450.
Mas, descendo mais fundo, até às entranhas da actual Basílica, acede-se à Gruta
da Anunciação, sob cujo altar se lê a inscrição Verbum caro hic factum est
[«Aqui o Verbo se fez carne»], e a outros lugares de culto antigos, talvez já
do século II. Numa grafite antiga foi encontrada a gravação XE MAPIA,
abreviação de Chaîre Maria, a primeira Ave-Maria da história.
11. A uns 200 metros para nordeste encontra-se
a Igreja da Nutrição, que guarda a memória de S. José e dos «irmãos de Jesus»
do ramo de José, muito zelosos dos seus direitos, tradição bem conhecida na
Igreja primitiva, a partir do século II, e fechados aos gentio-cristãos pelo
dogma da habdalah [= separação]. Nesse sentido, é sabido que em 570 impediram o
Anónimo de Piacenza de visitar a «casa de José», e, em 614, alistaram-se com os
Persas de Cosroé, vindo ao de cima o seu zelo destruidor de igrejas «cristãs».
Com a vitória de Heráclio, estes judeo-cristãos nazarenos levaram consigo as
suas tradições sobre Nazaré e S. José, e ter-se-ão refugiado junto dos coptos
egípcios. Logo a seguir, em 670, Arculfo já pôde visitar e descrever a casa de
S. José em Nazaré. A descrição de Arculfo vê-se confirmada mais tarde, nas
escavações do P. Viaud e de Fr. Benedetto Vlaminck, nos anos de 1890 e
1909-1910, e, mais tarde ainda, em 1970, pelo P. Bagatti.
12. Foi o Concílio de Basileia (1439) que
sugeriu a definição do dogma da Imaculada Conceição, proclamado depois por Pio
IX em 08 de Dezembro de 1854, através da bula Ineffabilis Deus. Note-se que o
termo «concepção», na linguagem bíblica, indica a totalidade da existência. O
velho orante do Salmo 71, olhando retrospectivamente para a sua vida de
fidelidade e de amor, exclama extasiado: «Sobre ti me apoiei desde o ventre,
desde as entranhas de minha mãe» (Salmo 71,6). Assim também, a existência de
Maria está, desde o seu início, sob a protecção de Deus, marcada com o selo de
Deus, não estando nunca sob o selo do pecado original, que mostra a existência
humana marcada por um projecto alternativo ao de Deus, em que cada existência
humana, eu, o meu pai, os filhos que aparecerão sobre a face da terra, queremos
ser por nossas próprias forças «como deus, conhecedores do bem e mal» (Génesis
3,5).
13. Esta celebração da Mãe de Deus e nossa Mãe
e Padroeira Principal de Portugal é um desafio imenso para o homem «em fuga»
deste tempo, que se esconde de si mesmo, que continua a esconder-se de Deus, e
que pretende esconder Deus, retirando-o da via pública e da vida pública.
Atravessamos verdadeiramente a «noite do mundo» (Weltnacht), diz Martin
Heidegger, onde «Cada um está sozinho no coração da terra/ atravessado por um
raio de sol:/ e é logo noite», como bem escreve o escritor italiano Salvatore
Quasimodo. Homem deste tempo às escuras, engessado, triste, exilado, escondido,
anestesiado, volta para a Luz, reentra em tua casa, no teu coração despedaçado.
Há-de seguramente por lá haver ainda, caída no fundo da alma, uma lágrima
dorida e uma mão de Mãe à tua espera!
António Couto, in Mesa de Palavras
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