A
devoção mariana é um facto relevante na piedade pessoal de muitos portugueses.
Mas não é a esse título que a vou sublinhar aqui, antes a título coletivo, como
devoção nacional que também parece ser.
Efetivamente,
as grandes horas portuguesas foram várias vezes horas marianas, porque a Maria
se referiram, pela intercessão ou no louvor. E se os povos se simbolizam nas
realidades que afirmam com mais constância e calor, então o povo português
aparece-nos frequentemente como um povo mariano.
Relancemos:
A
nossa realidade política foi recortada pela espada de D. Afonso Henriques. De
Guimarães a Lisboa e ao Alentejo, criou o Estado português, juntando gentes
diversas, de dentro e de fora. As sés que levantou dedicou-as a Santa Maria.
Mas como se denominavam os que morriam na luta, os que caíam na guerra contra
os Mouros? Ao menos em alguns casos, mártires. E quem os recebia no céu? Santa
Maria.
Efetivamente,
mal começado o cerco a Lisboa, em 1147, D. Afonso teve de correr a Sacavém, a
parar uns mouros que o vinham cercar por sua vez. Pelos cristãos mortos na
peleja, levantou aí um templo a Nossa Senhora dos Mártires. Depois de
conquistada a cidade, no local onde se tinham sepultado os cruzados ingleses,
ergueu também um templo. O nome? Nossa Senhora dos Mártires. A sua dedicação
celebrava-se a 13 de maio...
A
guerra continuou nos reinados seguintes e a invocação também. Mesmo ao sul
ainda aparecerão igrejas de Nossa Senhora dos Mártires, em Silves e Castro
Marim, por exemplo. E Frei Agostinho de Santa Maria escreveu mais tarde no seu
Santuário Mariano sobre a imagem de Castro Marim: «Este título se devia dar à
Senhora, sem dúvida, porque no tempo dos Mouros se enterrariam junto ao seu
altar os corpos daqueles soldados, que em defesa da fé sacrificaram as vidas.»
Quando
Portugal se ia perdendo na herança de D. Fernando, foi em Aljubarrota que se
ganhou. E isto deu-se na véspera de Santa Maria de agosto, como sabia D. João
I, como sabia Nun’Álvares, como sabiam todos. O Condestável, narra Fernão
Lopes, animava os nossos, pois «que a Mãe de Deus, cuja véspera era então,
seria sua advogada»; e o novo rei reforçava: «Em nome de Deus e da Virgem
Maria, cujo dia é amanhã, sejamos todos fortes e prestes.»
Depois
foi a vitória portuguesa e a peregrinação do nosso rei à Senhora da Oliveira,
em Guimarães, a pé e a agradecer. E o agradecimento lavrado em pedra, que foi
Santa Maria da Vitória. Antes da batalha e por causa dela, já o povo de Lisboa
prometera também uma procissão anual a Nossa Senhora da Escada, que se venerava
ao pé do Rossio.
Consolidado
o reino, seguiu-se a expansão. E o mesmo Frei Agostinho de Santa Maria pôde
dizer depois que o infante D. Henrique que «nesta sua empresa escolheu por sua
principal estrela a Maria Santíssima, e aos Santos Reis Magos, rogando-lhes que
mostrassem outras novas estrelas, novos homens e novos mundos».
A
armada portuguesa avistou Ceuta a 14 de agosto de 1415, outra véspera da
Assunção. A 14 de agosto também, mas de 1437, o Infante Santo foi a Nossa
Senhora da Escada, antes de partir para Tânger, onde seria preso para não mais
voltar. Vitória por derrota, conta Frei Luís de Sousa que «com melhor sucesso
fez semelhante despedida seu sobrinho el-rei D. Afonso Quinto, filho de el-rei
D. Duarte, no ano de 1471, quando foi tomar Arzila e Tânger aos Mouros.
Acompanhado de toda a corte veio visitar a Senhora (da Escada) na manhã do dia
de Sua gloriosa Assunção, a quinze de agosto».
Para
mais longe iriam Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral. Para mais longe, mas
também de ao pé de Maria: o Gama e os seus passaram a noite de 7 de julho de
1497 em Santa Maria de Belém, antes da partida para a Índia; e aí ouviu missa o
descobridor do Brasil, a 8 de março de 1500, antes de partir por sua vez.
Horas
de glória, estas: glórias de Portugal e de Maria, assim foram vividas.
Seguiram-se outras, de derrota e desterro, marianas também. De facto, quando um
novo Império se perdeu em Alcácer Quibir, ainda antes de ter propriamente
começado, foi a Maria que recorreram muitos dos que lá ficaram cativos.
Recorreu-lhe,
por exemplo mais eloquente, Diogo Bernardes, nas suas Várias Rimas ao Bom Jesus
e à Virgem Gloriosa: «Oh Virgem singular, pura, sem mágoa, / [...] Esperança do
povo Lusitano, / Por vosso amor acuda a tanto dano / O poder infinito.»
«Esperança
do povo lusitano» – assim a viam os vencidos de Alcácer. E assim a continuaram
a ver os Portugueses, com a independência cada vez mais perdida sob os Filipes.
Sob
o domínio filipino, na verdade, seria proibida a procissão que o povo de Lisboa
fazia à Senhora da Escada, lembrando a vitória de Aljubarrota. Mas
determinações destas excitam ainda mais o que procuram obviar, e o que
aconteceu foi a insistência dos patriotas junto da Virgem Maria pela
recuperação da independência. Sobreveio que, tendo o governo filipino mandado
cortar pinheiros junto à Senhora da Atalaia, eles se entortaram milagrosamente,
ficando incapazes de servir, como anotou depois o autor do Santuário Mariano.
Não era o sinal do desagrado do Céu com os Espanhóis? Lenda ou não, o sentido é
evidente. E foi muita, nesses anos difíceis, a procura de livros de devoção
mariana.
Por
toda a Europa católica, o século XVII foi de grande exaltação de Maria,
especialmente na sua Conceição Imaculada. Na polémica antiprotestante
afirmava-se o lugar da Mãe de Jesus e o seu privilégio; e também os Filipes
promoveram esta afirmação. Mas quando Portugal se restaurou, a Imaculada
Conceição, particularmente venerada na corte ducal de Vila Viçosa, donde saía o
novo rei D. João IV, foi logo assumida como padroeira dos nossos destinos
reencontrados.
Foi
assim que Frei João de São Bernardino, pregando perante a corte, a 8 de
dezembro de 1640, não se esqueceu de afirmar: «Em sábado dedicado à Mãe de Deus
se aclamou rei por geração, linha e sangue o invictíssimo rei D. João o quarto
do nome, nosso senhor. Hoje é o oitavo dia da sua aclamação, sábado dedicado
pela Igreja à Imaculada Conceição da mesma divina Senhora: quiçá assinalou Deus
este dia de sábado em seu descanso, requievit die septimo, para que ficasse assinalado
por dia deputado ao descanso de Portugal.»
Depois,
nas Cortes de 1646, foi Nossa Senhora da Conceição tomada por padroeira de
Portugal e da sua independência, ainda muito insegura. Padroado escolhido,
padroado cumprido: a 8 de junho de 1663 os Portugueses ganharam a Batalha do
Ameixial aos Espanhóis, que não desistiam. – Vitória portuguesa ou vitória de
Maria? De Maria, disse-se logo; é que, a 26 e 27 de maio anterior, uma imagem
da Senhora da Piedade a anunciara milagrosamente em Santarém, facto depois
examinado e autenticado por Carta Pastoral do Deão e Cabido de Lisboa, de 15 de
janeiro de 1664.
Recuperou-se
a independência, vieram os anos dourados de D. João V, e, como geralmente
sucede em tempos de afirmação nacional, reescreveu-se a história. Para tal,
fundou o Magnânimo a Academia Real da História, por decreto datado
significativamente de 8 de dezembro de 1720. E a primeira história a fazer-se
seria a das Igrejas do Reino, a Lusitania Sacra. Mais uma vez, história de
Portugal ou história de Maria? Para D. Manuel Caetano de Sousa, diretor da
Academia, não havia diferença. Dizia assim: «Não é a obra da Lusitania Sacra
outra coisa senão. uma ilustração histórica de todas as Igrejas de Portugal
[...] Será o empenho da Lusitania Sacra ilustrar as Igrejas Catedrais deste
Reino, mas tudo redunda em glória da mesma Senhora, a quem todas elas são
dedicadas.»
No
século XVIII e com o aval do mesmo rei, conseguiu-se para Portugal uma festa
litúrgica de Nossa Senhora para cada mês do ano. As que já se celebravam,
juntaram-se assim a do Patrocínio de Maria, em novembro; a de Nossa Senhora dos
Prazeres, na segunda-feira depois da Pascoela, para todo o País; a de Nossa
Senhora do Desterro, no quarto domingo de abril; a da Maternidade, no primeiro
domingo de maio e a da Pureza de Nossa Senhora, no último de junho; já em 1815,
somou-se-lhes a do Coração de Maria, no domingo depois da Oitava da Assunção.
Depois
de tempos, tempos vêm... Com o século XIX veio também a ameaça e depois a
primeira invasão francesa. Em 1807 chegaram os exércitos de Napoleão e cá
continuaram pelo ano seguinte: muitas mortes e grande desolação. A rainha
louca, o príncipe. regente e a corte, fugidos para o Brasil. Mas havia a Rainha
do Céu, padroeira da pátria, e a ela se recorreu de novo. Derrotados na Roliça
e no Vimeiro, os Franceses partiram e os louvores voltaram: «Cantamos à Virgem
/ Louvores gerais: / Digam todos comigo: / Bendita sejais»; vinha num assim
chamado Cântico a Maria Santíssima em ação de graças por nos ter livrado dos pérfidos
e malvados franceses, saído em Lisboa logo nesse ano de 1808, com mais
entusiasmo do que inspiração.
O
século passado foi de graves alterações na vida religiosa portuguesa. O triunfo
do liberalismo não se fez sem grandes mal-entendidos de parte a parte, nas
relações entre política e religião, mal-entendidos que persistiram muito tempo.
As instituições católicas tinham-se naturalmente integrado na sociedade do
Antigo Regime: caído este, abalaram-se aquelas. Em 1834 foram extintas as
congregações religiosas – as masculinas logo e as femininas a prazo – e o
Governo passou a tutelar mais apertadamente ainda a vida da Igreja secular.
Além disto, olhava com muita desconfiança para tudo quanto vinha de fora, de
Roma especialmente, como atentatório da independência portuguesa e da religião
«nacional». Esta suspicácia do liberalismo português, herdada depois pelo
republicanismo, em relação a Roma e às congregações religiosas a ela ligadas,
foi um dos fatores mais persistentes da reserva de muitos católicos portugueses
em relação às instituições políticas, o que poderá ajudar a explicar o
desenraizamento e a brevidade delas.
Ora,
foi também a propósito da devoção mariana que esta nova situação se agudizou.
Em 8 de dezembro de 1854, o Papa Pio IX definiu o dogma da Imaculada Conceição
de Nossa Senhora. Tal verdade mariana era há muito confessada em Portugal e era
mesmo a inovação da padroeira do reino. Mas agora vinha de Roma a definição, e,
para o nacionalismo de muitos influentes, Roma era o estrangeiro e mesmo a
ameaça, já que Pio IX não se cansava de levantar objeções à teoria e à prática
dos regimes liberais. Estava novamente em uso o beneplácito, pelo qual as
decisões pontifícias só se executariam entre nós depois da aprovação das
Cortes. Teve de esperar-se até março do ano seguinte...
Estes
quatro meses de demora em reconhecer para Portugal o dogma da Imaculada
Conceição levantaram reparos nos meios católicos mais ativos. A demora era dos
poderes públicos e não da piedade portuguesa, afirmava A Nação de 17 de abril
de 1855: «Portugal, que sempre se distinguiu pelo seu zelo religioso, e pela
pureza da sua fé, Portugal, que nas suas cortes e universidades jura há séculos
a defesa da Imaculada Conceição, não podia, apesar de todas as desgraças,
deixar de associar-se à alegria universal de todos os católicos ao ser definido
pela Igreja como dogma, o que para ele era uma crença religiosa, e um princípio
de nacionalidade.»
E
a devoção mariana, «crença religiosa e princípio de nacionalidade» recrudesceu
então. São dessa época os versos do Padre Malhão que ainda hoje se cantam,
unindo a proteção de Maria com os destinos nacionais: «Salve, nobre Padroeira /
Do Povo, teu protegido, / Entre todos escolhido / Para povo do Senhor. / Ó
glória da nossa terra / Que tens salvado mil vezes, / Enquanto houver
Portugueses, / Tu serás o seu amor.» E em 1869 a Imaculada Conceição do Sameiro
uniria ainda outra vez marianismo e patriotismo. São de Almeida Braga, jovem
apóstolo de então, os seguintes versos, tão bem datados na piedade e nas
preocupações: Quanto aos que se opunham a esta devoção:
Oh!
não consintas que a feroz doutrina,
Que
tenta derrubar os teus altares,
Do
povo português invada os lares,
E
espalhe as trevas onde brilha a luz;
Quanto
às divisões dos portugueses, que só a fé reencontraria:
Faze
um povo d’irmãos do luso povo
Por
Deus e pela pátria, em verdadeira
Aliança
unidos numa só bandeira,
Rendendo
culto juntos ao mesmo altar;
Para
concluir:
E,
enfim, como vigia da atalaia
Os
Passos do inimigo a sentinela,
Assim
desse alto, tu, Senhora, vela
Sobre
os destinos deste povo teu.
Entretanto,
desde meados do século, ganhava adesão sempre maior a devoção do Mês de Maria:
a mesma devoção entre os católicos mais fervorosos e a mesma suspeita por parte
dos liberais mais desconfiados a respeito de novidades religiosas vindas de
fora, sobretudo as apadrinhadas pelos Papas e difundidas também por religiosos
– em Lisboa, era praticada por um lazarista francês na Igreja de São Luís, a partir
de 1859. Tinham surgido também as confrarias dedicadas ao Coração de Maria. A
do Porto nascera em 1845 e logo despertou desconfianças semelhantes, numa
cidade onde tanto se afirmaram no século passado quer o liberalismo mais
radical, quer a militância católica mais intensa. Por isso foi violentamente
interrompida a reunião da confraria portuense nos Congregados, a 8 de março de
1846, alegando-se que ela encobria uma conspiração antiliberal. Incidentes
destes e com idênticas alegações perturbaram muitas manifestações católicas em
Oitocentos.
A
devoção mariana, essa, não parou. E um autor chega a dizer que a arquiconfraria
do Sagrado Coração de Maria no Porto tinha, na viragem do século, 100 000
associados.
Mas,
virado o século, a mesma desadequação – agora muito mais acentuada – entre
devoção mariana e instituições políticas se fez notar, enquadrando
concretamente os acontecimentos de Fátima. É certo que o tipo de relações
Igreja-Estado era diferente: em 1854, quando foi definida a Imaculada
Conceição, o catolicismo era religião do Estado, e agora este não reconhecia
culto algum. Mas a atuação da autoridade local em relação aos pastorinhos, por
exemplo, significava mais do que simples indiferença.
Também
isto não impediu o desenvolvimento da devoção mariana, agora como novo
estímulo. Desenvolvimento tal que, à luz de Fátima, foi mais uma vez
interpretado e garantido o destino nacional. Apenas dois marcos para
terminarmos: o I Congresso Mariano Nacional, reunido em Braga em 1926; e a
Primeira Consagração de Portugal ao Coração Imaculado de Maria, feita pelo
Episcopado Português em Fátima, a 13 de maio de 1931. Consagração que acabava
precisamente com estas palavras: «Lembrai-vos, enfim, ó Padroeira da nossa
terra, que Portugal ensinou tantos povos a saudar-vos bendita entre todas as
mulheres. Em memória do que fez pela vossa glória, salvai-o, Senhora de
Fátima...»
E,
desde então, a devoção portuguesa continua a unir Maria e o nosso futuro
nacional, não se cansando de repetir: «Nossa Senhora do Rosário de Fátima,
salvai-nos e salvai Portugal!»
Deste
brevíssimo e apressado relance, poderei concluir com mais certeza o que comecei
por dizer: Se os povos se simbolizam nas realidades que afirmam com mais
constância e calor, então o povo português aparece-nos frequentemente como um
povo mariano. Creio que isto continua a ser assim para uma parte muito
expressiva da nossa comunidade nacional.
D. Manuel Clemente, in Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
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