1.
O texto do Evangelho deste Domingo II do Advento (Mateus 3,1-12) apresenta
algumas notas salientes: 1) É notória a sintonia de João com Jesus, dado que
ambos abrem o seu ministério, dizendo as mesmas palavras: «Convertei-vos,
porque se fez próximo o Reino dos Céus» (Mateus 3,2; cf. Mateus 4,17); 2) ambos
colocam o seu ministério com referência a Isaías (Mateus 3,3; cf. Isaías 40,3;
4,14-15; 8,23-9,1); 3) ambos abrem no deserto a sua missão, evocando o Êxodo do
Egipto, o novo Êxodo da Babilónia (Ezequiel 20,33-38) e o Êxodo do noivado de
Deus com Israel (Oseias 2,16-23), mas também a febre messiânica que situava no
deserto o princípio da renovação escatológica; 4) a indumentária de João
Baptista (Mateus 3,4) evoca a de Elias (2 Reis 1,8), com o qual é, de resto,
identificado por Jesus (Mateus 11,14; 17,12-13).
2. Se é evocada a continuidade dos ministérios
de João e de Jesus, não deixa também de ser bem acentuado o confronto entre os
dois: 1) vê-se bem que João Baptista anuncia um Messias juiz, que traz na mão o
machado e a pá de joeirar (3,10-12), enquanto que Jesus assumirá a figura de
Servo do Senhor manso e humilde (12,17-21); 2) o apelo à conversão que João faz
não é dirigido aos pagãos, mas aos israelitas piedosos (3,7-10): portanto, face
ao Messias juiz que vem aí, também os justos se devem converter; não é a raça
de Abraão que conta, mas a fé; 3) a conversão manifesta-se em fazer fruto, uma
ideia recorrente em Mateus (cf. 7,16-20; 12,33; 13,8; 21,41 e 43; 25,40 e 45…);
4) a conversão, aqui expressa pelo verbo metanoéô, não deve ser vista apenas
pelo seu significado etimológico: mudar de mentalidade; seria uma maneira de
ver muito intimista, mostraria o homem debruçado sobre si mesmo, sobre os seus
pecados; ora, a raiz hebraica shûb, sobretudo depois de Jeremias (Isaías 31,6;
45,22; 55,7; Jeremias 3,7.10.14.22; 4,1; 8,5; 18,11; 24,7; 25,5; 26,3; 35,15;
36,7; 44,5; Lamentações 3,40; Ezequiel 13,22; 14,6; 18,23 e 30; 33,9 e 11;
Oseias 11,5; 12,6; 14,1-2; Joel 2,12-13; Zacarias 1,3-4; Malaquias 3,7), não implica
o dobrar-se do homem sobre si mesmo, mas o orientar-se para ALGUÉM, para Deus,
com quem o ser humano cortou relações, distanciando-se e quebrando a aliança.
Esta ideia de conversão como caminho de regresso a Deus estava muito
disseminada no judaísmo primitivo, mas era desconhecida na religião grega; 5) à
vista de Jesus que vem no meio da multidão, como verdadeiro Servo do Senhor
(3,13-14), que assume as faltas da multidão, João fica confuso; na verdade,
esperava um Juiz, e não um Servo solidário com o povo no pecado (por isso, vem,
no meio do povo, a este baptismo de penitência); 6) além disso, e contra todas
as expectativas de João, Jesus não vem para baptizar, mas para ser baptizado
(3,11.13-14); 7) o diálogo travado entre João Baptista e Jesus (3,14-15) é
exclusivo de Mateus (nenhum outro Evangelho o descreve).
3. Faz-se notório o sonho de um Deus que desce
ao nosso meio, não para nos condenar ou derrubar, mas para se tornar solidário
connosco.
4. Isaías 11,1-10, que serve hoje de
ressonância ao Evangelho, mostra muito mais o tom manso e suave do Servo do
Senhor que Jesus incarna do que o martelo do Juiz que João Baptista prenuncia.
Isaías abre diante de nós um mundo novo, tenro e terno, que, visto desde este
nosso mundo escuro e tantas vezes desumano, soa a sonho. Ei-lo desenhado nestes
versos imensos: «Então o lobo habitará com o cordeiro,/ o leopardo deitar-se-á
com o cabrito,/ o bezerro e o leãozinho andarão juntos,/ e um menino pequeno os
conduzirá.// A vaca e o urso pastarão juntos,/ juntas se deitarão as suas
crias,/ o leão comerá feno com o boi,/ e a criança de peito brincará com a
víbora» (Isaías 11,6-8).
5. Avista-se daqui o Menino de Belém. Uma paz
a perder de vista, sem princípio e sem fim. Um mundo novo governado por um
menino pequeno. Vê-se bem que não se parece nada com o nosso, cheio de raivas e
de ódios, invejas, mentiras, manhas, astúcias, violências e guerras. Nenhum
menino poderia governar um mundo assim.
6. Contra este mundo empedernido e embrutecido
embate a ternura do Menino de Belém. Entenda-se bem: não é o menino que está
errado; somos nós que estamos completamente errados. É por isso que somos convidados à conversão.
7. O mundo novo e saboroso que emerge dos
textos de hoje é também sublinhado por S. Paulo nas exortações que nos dirige
na Carta endereçada aos Romanos 15,4-9. Como seria belo um mundo pautado por
uma verdadeira fraternidade em que todos vivêssemos sob o impulso e o alento
carinhoso e criador de Deus. Na verdade, todos respiramos o mesmo alento, que o
texto grego diz com o belo termo composto homothymadón (Romanos 15,6), que
junta homós [= mesma] e thymós [= alma], sendo que thymós deriva de thýô [=
soprar]. E que mundo maravilhoso surgiria, rompendo a crosta do egoísmo e da
dureza de coração, se «nos acolhêssemos uns aos outros, como Cristo nos acolheu
a nós» (Romanos 15,7). Aí está então a comunidade humana irmanada e reunida,
porque todos recebemos de Deus o mesmo alento, o mesmo sopro criador (Génesis
2,7), e com uma só boca (en henì stómati) e a uma só voz cantamos os louvores
do nosso Deus (Romanos 15,6). Esta linguagem e esta harmonia enchem por inteiro
a comunidade primitiva (Actos 1,14; 2,46; 5,12).
D. António Couto, in Mesa de Palavras
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