19 janeiro, 2014

NAQUELE DIA EM BETHABARA



1. Aí está, já no Domingo II do Tempo Comum, outra vez João Baptista, a figura do umbral ou do limiar, que está sempre ali, à porta, para acolher e fazer as apresentações. Ele está em Betânia [= «Casa do pobre»] ou Bethabara [= «Casa da passagem»] – consoante as versões –, sempre do outro lado do Jordão, como refere bem João 1,28. João coloca-se estrategicamente do outro lado do Jordão, onde um dia o povo do Êxodo parou também, para preparar a entrada na Terra Prometida, atravessando o Jordão (Josué, 3).
 2. Este início do Evangelho de João (1,19-2,12) distribui as acções por dias. No primeiro dia (João 1,19-28), João Baptista, postado no umbral de Bethabara, é interrogado pelas autoridades acerca da sua identidade. No segundo dia (1,29-34), João Baptista acolhe Jesus e apresenta-o a nós. No terceiro dia (1,35-42), alguns discípulos de João Baptista seguem Jesus, e Simão recebe o nome de Cefas, única vez nos Evangelhos, que significa Pedra esburacada, acolhedora e protectora. No quarto dia (1,43-51), Jesus chama Filipe e revela-se a Natanael e aos outros discípulos. Estes quatro dias representam em crescendo a preparação remota para a manifestação da Glória de Jesus. Correspondem à primeira parte da preparação para a festa do Dom da Lei, que os judeus celebravam no Pentecostes. Depois destes quatro dias, passa-se logo para o «3.º Dia» (2,1-12), que é o 7.º [= 4+3], e que tem a ver com a manifestação da Glória de Jesus (2,11), que corresponde ao 3.º Dia da manifestação da Glória de Deus no Sinai (Êxodo 19,10-20), para o qual se requerem dois dias de intensa preparação (Êxodo 19,10-11). Se os quatro primeiros dias constituem a preparação remota, os dois seguintes são a preparação próxima para este 3.º Dia! Este era o esquema da preparação do povo para a Festa do Dom da Lei de Deus que se celebrava no Pentecostes.
 3. O Evangelho deste Domingo II do Tempo Comum (João 1,29-34) mostra-nos o 2.º dia dos primeiros quatro de preparação. João Baptista permanece parado em Bethabara [= «Casa de passagem»], desde João 1,28, imóvel e sereno e atento. O lugar em que permanece parado, define-o e define-nos: é um umbral ou limiar. Todo o umbral ou limiar é um lugar de passagem. Estamos de passagem. João Baptista ocupa, portanto, o seu lugar estreito e aberto entre o des-lugar e a casa, o deserto e a Terra Prometida, entre o Antigo e o Novo Testamento. É desse lugar de passagem, mas em que está parado como um guarda ou sentinela vigilante, que João vê bem (emblépô) Jesus a passar (peripatoûnti) (João 1,36) e a VIR ao seu encontro (João 1,29). Como Deus que VEM sempre ao nosso encontro. E apresenta-o como o CORDEIRO DE DEUS, que tira o pecado do mundo. Apresenta-o a nós, pois não é dito que esteja lá mais alguém. Riquíssima apresentação de Jesus. Na verdade, Cordeiro diz-se na língua aramaica, língua comum então falada, talya’. Mas talya’ significa, não só «cordeiro», mas também «servo», «filho» e «pão». Aí está traçada a identidade de Jesus.
 4. O Espírito de Deus entra na nossa história, descendo e permanecendo na humanidade de Jesus. A humanidade de Jesus é a porta por onde entra em nossa casa o Espírito de Deus. É esta novidade que, do seu posto de sentinela, João Baptista está a ver (verbo no perfeito grego), e dela dá testemunho (verbo no perfeito grego). Entenda-se bem: João Baptista dá testemunho, não porque viu e já não vê, mas porque viu e continua a ver, exactamente como as testemunhas de Jesus Ressuscitado (João 20). O Filho de Deus feito Homem, sobre quem desce e permanece o Espírito de Deus, Vem ao nosso encontro em Bethabara, para nos fazer entrar em Casa, na Terra Prometida.
 5. Cordeiro, Servo, Filho, Pão: eis Jesus, manso e dócil, nosso irmão e nosso alimento. O «Segundo Canto do Servo do Senhor» (Isaías 49,1-6), em que Hoje se espelha o Evangelho, já mostra este Servo de Deus, libertado do serviço entre os povos estrangeiros, para se colocar exclusivamente ao serviço do Senhor, que, por isso e para isso, o pode chamar «meu Servo» (Isaías 49,3 e 6). A sua missão será reconduzir Israel para Deus, de quem se tinha afastado física e moralmente (Isaías 49,5). Fica, todavia, logo claro que não é suficiente proceder à reunião dos filhos de Abraão. É necessário ir mais longe e refazer o mundo dos filhos de Adam. É necessário ser a Luz das nações, como Jesus (Lucas 2,32) e todos os seus escolhidos e enviados.
 6. Veja-se Paulo, que faz sua a missão do Servo Isarel de ser Luz das nações até aos confins da terra (Actos 13,47). É nesse rastro de Luz que chega um dia a Corinto para lá acender a Luz de Cristo, e velar por essa Luz. É por isso que hoje escutamos também o princípio da correspondência que Paulo estabelece com a comunidade de Corinto (1 Coríntios 1,1-3).
 7. É o cântico novo que ecoa hoje na nossa boca, e que se vai ouvindo já por toda a terra. De acordo com a música e a letra que pedimos emprestada ao Salmo 40, que temos de aprender a saborear e a trautear.


D. António Couto, in Mesa de Palavras

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