1.
Aí está, já no Domingo II do Tempo Comum, outra vez João Baptista, a figura do
umbral ou do limiar, que está sempre ali, à porta, para acolher e fazer as
apresentações. Ele está em Betânia [= «Casa do pobre»] ou Bethabara [=
«Casa da passagem»] – consoante as versões –, sempre do outro lado do Jordão,
como refere bem João 1,28. João coloca-se estrategicamente do outro lado do
Jordão, onde um dia o povo do Êxodo parou também, para preparar a entrada na
Terra Prometida, atravessando o Jordão (Josué, 3).
2.
Este início do Evangelho de João (1,19-2,12) distribui as acções por dias. No
primeiro dia (João 1,19-28), João Baptista, postado no umbral de Bethabara,
é interrogado pelas autoridades acerca da sua identidade. No segundo dia
(1,29-34), João Baptista acolhe Jesus e apresenta-o a nós. No terceiro dia
(1,35-42), alguns discípulos de João Baptista seguem Jesus, e Simão recebe o
nome de Cefas, única vez nos Evangelhos, que significa Pedra esburacada,
acolhedora e protectora. No quarto dia (1,43-51), Jesus chama Filipe e
revela-se a Natanael e aos outros discípulos. Estes quatro dias representam em
crescendo a preparação remota para a manifestação da Glória de Jesus.
Correspondem à primeira parte da preparação para a festa do Dom da Lei, que os
judeus celebravam no Pentecostes. Depois destes quatro dias, passa-se logo para
o «3.º Dia» (2,1-12), que é o 7.º [= 4+3], e que tem a ver com a manifestação
da Glória de Jesus (2,11), que corresponde ao 3.º Dia da manifestação da Glória
de Deus no Sinai (Êxodo 19,10-20), para o qual se requerem dois dias de intensa
preparação (Êxodo 19,10-11). Se os quatro primeiros dias constituem a preparação
remota, os dois seguintes são a preparação próxima para este 3.º Dia! Este era
o esquema da preparação do povo para a Festa do Dom da Lei de Deus que se
celebrava no Pentecostes.
3.
O Evangelho deste Domingo II do Tempo Comum (João 1,29-34) mostra-nos o 2.º dia
dos primeiros quatro de preparação. João Baptista permanece parado em Bethabara [=
«Casa de passagem»], desde João 1,28, imóvel e sereno e atento. O lugar em que
permanece parado, define-o e define-nos: é um umbral ou limiar. Todo o umbral
ou limiar é um lugar de passagem. Estamos de passagem. João Baptista ocupa,
portanto, o seu lugar estreito e aberto entre o des-lugar e a casa, o deserto e
a Terra Prometida, entre o Antigo e o Novo Testamento. É desse lugar de
passagem, mas em que está parado como um guarda ou sentinela vigilante, que
João vê bem (emblépô) Jesus a passar (peripatoûnti) (João 1,36) e
a VIR ao seu encontro (João 1,29). Como Deus que VEM sempre ao nosso encontro.
E apresenta-o como o CORDEIRO DE DEUS, que tira o pecado do mundo. Apresenta-o
a nós, pois não é dito que esteja lá mais alguém. Riquíssima apresentação de
Jesus. Na verdade, Cordeiro diz-se na língua aramaica, língua comum então
falada, talya’. Mas talya’ significa, não só
«cordeiro», mas também «servo», «filho» e «pão». Aí está traçada a identidade
de Jesus.
4.
O Espírito de Deus entra na nossa história, descendo e permanecendo na
humanidade de Jesus. A humanidade de Jesus é a porta por onde entra em nossa
casa o Espírito de Deus. É esta novidade que, do seu posto de sentinela, João
Baptista está a ver (verbo no perfeito grego), e dela dá testemunho (verbo no
perfeito grego). Entenda-se bem: João Baptista dá testemunho, não porque viu e
já não vê, mas porque viu e continua a ver, exactamente como as testemunhas de
Jesus Ressuscitado (João 20). O Filho de Deus feito Homem, sobre quem desce e
permanece o Espírito de Deus, Vem ao nosso encontro em Bethabara,
para nos fazer entrar em Casa, na Terra Prometida.
5.
Cordeiro, Servo, Filho, Pão: eis Jesus, manso e dócil, nosso irmão e nosso
alimento. O «Segundo Canto do Servo do Senhor» (Isaías 49,1-6), em que Hoje se
espelha o Evangelho, já mostra este Servo de Deus, libertado do serviço entre
os povos estrangeiros, para se colocar exclusivamente ao serviço do Senhor,
que, por isso e para isso, o pode chamar «meu Servo» (Isaías 49,3 e 6). A sua
missão será reconduzir Israel para Deus, de quem se tinha afastado física e
moralmente (Isaías 49,5). Fica, todavia, logo claro que não é suficiente
proceder à reunião dos filhos de Abraão. É necessário ir mais longe e refazer o
mundo dos filhos de Adam. É necessário ser a Luz das nações, como Jesus (Lucas
2,32) e todos os seus escolhidos e enviados.
6.
Veja-se Paulo, que faz sua a missão do Servo Isarel de ser Luz das nações até
aos confins da terra (Actos 13,47). É nesse rastro de Luz que chega um dia a
Corinto para lá acender a Luz de Cristo, e velar por essa Luz. É por isso que
hoje escutamos também o princípio da correspondência que Paulo estabelece com a
comunidade de Corinto (1 Coríntios 1,1-3).
7.
É o cântico novo que ecoa hoje na nossa boca, e que se vai ouvindo já por toda
a terra. De acordo com a música e a letra que pedimos emprestada ao Salmo 40,
que temos de aprender a saborear e a trautear.
D. António
Couto, in Mesa de Palavras
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