27 janeiro, 2014

O porto


Titulo original: Le Havre
De: Aki Kaurismäki
Com: André Wilms, Jean-Pierre Darroussin, Kati Outinen, Blondin Miguel
Género: drama, comedia
Outros dados: França, 2011, cores, 93min, M/12


Le Havre, o último filme de Aki Kaurismäki, é uma demonstração do amor. É um tanto ou quanto repentino e inconsequente classificá-lo assim, mas é o que ele é. Não se pense com isto que é um filme romântico, não. Não um amor apaixonado, juvenil ou plastificado. Pelo contrário, muito maduro e fiel, com o seu quê de ingenuidade.

A história começa, num dia de pouca luz, no porto deLe Havre, França, quando Marcel Marx (André Wilms) se aprontava para o seu almoço de todos os dias, preparado, meticulosamente, pela sua mulher Arletty (Kati Outinen), e se depara com uma criança africana escondida entre as madeiras molhadas da doca, a olhar fixamente para ele. Idrissa (Blondin Miguel) é um rapaz novo, que fugiu do seu país por uma vida melhor, com destino Londres, via um contentor de mercadorias, como tantos outros. Vendo-o perdido, Marcel decide então levá-lo para sua casa. Mas ao chegar, encontra a casa vazia, sem Arletty, nem comida para o pobre rapaz.

Idrissa não poderia estar mais bem entregue. Desde Marcel, o seu novo pai, que nem jantar tem para lhe dar, a amigos do bairro de cabelo comprido e cigarro no canto da boca, ao dono da mercearia a quem Marcel deve fiado, à empregada do café que dá os melhores conselhos, e ao bom coração do inspector da polícia que o quer capturar para o mandar de volta para o seu país.

Le Havre mostra-nos a dignidade na pobreza. Marcel que sempre engraxou sapatos pelo pão de cada dia, mesmo não tendo nada para oferecer a Idrissa, ao chegar a casa, oferece-lhe ensinamentos.
Mostra-nos a amizade na pobreza, quando o rabugento dono da mercearia coloca às escondidas o jantar no saco de Idrissa, ao mesmo tempo que grita com Marcel para ele lhe pagar o que deve.
E enche-nos com o humor na pobreza. Ingénuo, ao mesmo tempo que inteligente e denunciador. Em cenários pobres, dias escuros e personagens cansadas, consegue fazer-nos rir.

Envolta na miséria, uma relação nasce, estende-se, sacrifica-se e supera-se. Do sítio de onde poderia nascer a vigarice, o individualismo, ou o desespero. Porque seria tão mais fácil assim. Aki Kaurismäki filma um milagre dos nossos dias. Saímos do filme a querer viver nos barracões daquele bairro, a querer absorver tudo o que a empregada do café tem para nos dizer, a querer beber uns copos com o Marcel, mesmo sabendo que quando chegarmos a casa a mesa vai estar vazia. Mas não é deste preenchido que vos falo, deste conforto gordo. Falo-vos de um nada que se transforma em tudo, e se espraia até perder de vista, que não termina na pobreza, inesgotável. Um alimento que se multiplica e não deixa fome. Que nos desarma sem nos magoar. Que põe em perspectiva, que vê para lá do olhar. Um tudo que preenche e basta por si mesmo. Só no amor Le Havre pode existir.

Concha Pais de Carvalho, in http://www.essejota.net/index.php?b=home

Sem comentários:

Enviar um comentário