04 abril, 2014

12 Anos Escravo


Steve McQueen é o autor deste oscarizado filme sobre a escravatura. Michael Fassbender volta a colaborar com o realizador – é a terceira vez – ao lado de revelações negras que iluminam a tristeza da servidão com uma humanidade que comove, deleita e ensina. Este é o terceiro filme de McQueen, depois de Hunger e Shame. E o autor é quase um actor – pela omnipresença da sua singular sensibilidade, a perfeição do gesto com a câmara e uma apurada capacidade literária.

O terceiro filósofo do pódio Grego atribuía à verosimilhança uma das qualidades máximas da tragédia. Quanto mais próxima do real fosse a obra, mais verdadeira, mais autêntica. No cinema, o prólogo “baseado em factos reais” (mesmo que não incorporado nas páginas no filme), predispõe o espectador para uma intensidade mais humana do que um filme pode dar à partida – por se tratar de um filme e não da vida. Ou não fosse esta a razão fundamental de se anunciar ao interlocutor a sua dimensão extra-ficcional… Solomon Northup, homem concreto que existiu e pisou a terra como nós, voltou a sua pena para o Norte da literatura autobiográfica e em 1853 publicou a sua assombrosa memória, que vendeu trinta mil exemplares em três anos e depois deslizou para o esquecimento. Só voltaria a ser lida com atenção por dois historiadores que republicaram a história, juntando-lhe notas históricas, em 1968. Mais tarde, deu origem a uma série televisiva, e agora a esta longa-metragem do realizador britânico. Northup, que acompanhamos ao longo de duas horas, encabeça com a sua homónima obra todo um oceano de escravos de que não se conhece a vida porque eram escravos, e muitos porque não escreveram. Neste caso, a veracidade do que se conta parte do próprio ser humano que sofreu aquilo que ouvimos e vemos ser contado. No final do seu livro, o autor reforça aquilo que acaba de ser dito: “Isto não é ficção, não é exagero. Se falhei em alguma coisa, foi em apresentar ao leitor, de forma proeminente, o lado iluminado deste quadro”.

O filme começa com a apresentação da figura principal, Solomon, carpinteiro e violinista oriundo de Nova Iorque, pai de duas crianças, que é recrutado por dois colaboradores de um circo ambulante para um trabalho de breve duração mas alta remuneração. Sem avisar a mulher, Northup aceita o temporário emprego e parte com o par circense em viagem. O seu dom musical é pouca água para o rio que o espera, cuja foz é inesperada para a personagem, mas previsível para o espectador. Drogado e espancado depois do sono, Solomon é levado para Nova Orleães, onde ainda consegue, ao chegar, escrever uma carta à família, mas sem grande efeito – pois o seu rasto perdera-se pelo caminho. Solomon adopta o pseudónimo que lhe é atribuído e, forçado a esquecer a sua vida em Nova Iorque, inicia um novo ciclo da sua vida, que durará doze anos.

Se este filme desperta algum tipo de reflexão no espectador, dela não se pode falar sem mencionar o engenho de McQueen na forma como nos mostra cada fragmento deste filme. Ao falar de escravatura, estamos também a falar em liberdade. E uma das técnicas que McQueen usa para estabelecer esse contraste é alternar passos narrativos duros de ver com planos da natureza circundante, como as árvores ou o cair do dia, que nos trazem as sensações simultâneas de prisão e libertação. Além disso, a personagem principal é ao mesmo tempo a encarnação da ausência de liberdade e o desejo de a encontrar, e é nesse desejo que reside a sua vitória no encontro final com uma nova possibilidade de felicidade e plenitude.

Solomon Northup pode ajudar-nos a olhar a nossa vida com a aceitação e paciência próprias de um mártir. Num dos diálogos com Patsey, o seu grito é antes de mais um desejo fortíssimo de verdade e dignidade. “Não vou cair no desespero! Vou manter-me forte até que a liberdade surja!” Ao chegar a casa, depois de uma dezena de anos sob a alçada de latifundiários sem alma, pede perdão à sua família pela ausência. A sua dignidade nunca sucumbe, durante o longo período de servo, à resignação da maioria dos outros desgraçados. Diz ele, em forma de máxima, “Eu não quero sobreviver. Eu quero viver.” É este espírito que o leva a concluir a obra da sua vida com a paz interior que todos nós, filhos do pecado mas ávidos de bem, desejamos para nós mesmos. “Espero daqui para a frente levar uma vida justa e modesta, e por fim descansar no adro da igreja onde o meu pai dorme.”


António Seabra, in http://www.essejota.net/index.php?b=home


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