02 dezembro, 2013

Relações


1             Oh! Quem pudesse dar bem a entender a V. Senhoria a quietude e sossego em que se encontra a alma! É já tanta a certeza de que há-de gozar de Deus, que parece já goza a alma da posse que se lhe há dado, embora não tenha o gozo. É como se alguém houvesse dado a outro uma grande renda. E, por meio de escrituras muito firmes, para a gozar daí a certo tempo e colher frutos; mas até então não goza senão da certeza que já lhe deram, de que gozará esta renda. E, com o reconhecimento que lhe fica, nem a quereria gozar, porque lhe parece que não a mereceu, senão somente servir, ainda que esteja padecendo muito; e até, algumas vezes, parece que daqui até ao fim do mundo seria pouco para servir a Quem lhe deu esta posse. É que, na verdade, já em parte não está sujeita às misérias do mundo como costumava; porque, embora sofra mais, dir-se-ia tão somente to­carem-lhe na roupa. A alma está como num castelo, com senhorio, e assim não perde a paz, ainda que esta segurança não lhe tire um grande temor de ofender a Deus e não a faça deixar tudo o que possa impedi-la de O servir, e assim anda com mais cuidado ainda. Mas vive tão olvidada de seu próprio proveito, que lhe parece ter em parte perdido o ser, tão esquecida anda de si mesma. Em tudo tem em vista o que é de honra de Deus, o cumprir melhor a Sua vontade e que Ele seja glorificado.

2             Conquanto isto seja assim, no que toca à sua saúde e corpo, pare­ce-me ter maior cuidado e menos mortificação no comer e, no fazer penitência, não são os desejos que tinha. Mas, ao que parece, tudo vai ordenado a fim de poder servir mais a Deus em outras coisas e muitas vezes Lhe oferece como um grande sacrifício o ter de cuidar do corpo, pois muito lhe custa. E algumas vezes põe-se à prova em alguma penitência, mas, e sem dúvida a seu parecer, não a pode fazer sem dano da sua saúde, e lem­bra-se do que seus prelados lhe mandam. Isto no desejo que tem de ter saúde, também se deve intrometer bastante amor próprio. Mas, a meu pa­recer, entendo que me daria muito mais gosto poder fazer penitência, como me dava quando fazia muita; porque ao menos parecia-me fazer alguma coisa e dar bom exemplo e vivia sem este tormento que causa o não servir a Deus em nada. Veja V. Senhoria o que será melhor fazer quanto a isto.
3             Isto das visões imaginárias cessou; mas parece que sempre se anda com esta visão intelectual destas três Pessoas e da Humanidade, que é, ao que penso, graça muito mais subida. E agora entendo, segundo julgo, que eram de Deus as que tenho tido, porque dispunham a alma para o estado em que agora está. Mas, como tão miserável e de tão pouca fortaleza, levava-a Deus como via que era preciso; a meu parecer, são muito de apreciar quando são de Deus.
4             As falas interiores não cessaram, pois, quando é mister, dá-me Nosso Senhor alguns avisos e, ainda agora em Palência, ter-se-ia feito um bom disparate, embora não de pecado, se não fora isto.27
5             Os actos e os desejos não parece que levam a força que costumavam, pois, ainda que sejam grandes, é maior a força que tem o desejo de que se faça a vontade de Deus e de quanto seja de Sua glória; ora, como a alma está bem convencida de que Sua Majestade sabe o que para isto convém e está apartada de todo o interesse próprio, acabam-se-lhe depressa esses outros desejos e actos; e, em meu parecer, não têm em si força. Daqui procede o medo que trago em mim, algumas vezes, embora não com a inquietude e pena que costumava, de que esteja a alma apalermada e eu sem fazer nada, porque penitência não posso fazer. Desejos de padecer e de martírio e de ver a Deus, não têm força e o mais ordinário é não poder. Parece que vivo só para comer e dormir e não ter pena de nada, e até isto de não ter pena, não ma dá, como digo, que temo seja engano. Mas não o posso crer porque, sem dúvida alguma, me parece não reina em mim, com força, apego a nenhuma criatura nem a toda a glória do Céu, mas só o amar a este Deus, que isto não sofre diminuição, antes, a meu parecer, cresce, bem como o desejo que todos O sirvam.
6             Mas com isto me espanta uma coisa: é que aqueles sentimentos tão excessivos e interiores que me costumavam atormentar ao ver as almas perderem-se e, ao pensar se faria alguma ofensa a Deus, tão pouco os posso sentir agora desse modo, ainda que, a meu parecer, não é menor o desejo de que não seja ofendido.
7             Há-de advertir V. Senhoria que em tudo isto, quer no que agora tenho, quer no passado, não hei podido mais, nem está em minha mão; servir mais, isto sim; poderia se não fosse tão ruim. Mas digo que, se eu agora, com grande cuidado, procurasse desejar morrer, não poderia nem fazer osactos como costumava, sem sentir as penas pelas ofensas de Deus, nem tão pouco os temores tão grandes que trouxe em mim tantos anos, pois me parecia andar enganada. E assim, agora já não preciso de andar a consultar letrados nem de dizer nada a ninguém: é só assegurar-me se vou bem e se posso fazer alguma coisa. E isto tenho tratado com alguns com quem havia tratado o demais, que é o Frei Domingo e o Mestre Medina e uns da Com­panhia. Com o que V. Senhoria agora me disser, acabarei de me assegurar pelo grande crédito em que o tenho. Olhe muito a isto, por amor de Deus.
Também não me foi tirado o entender que estão no Céu algumas almas dos que morrem, das que me tocam de perto; outras, não.
8             A soledade me faz pensar que não se pode dar aquele sentido a: «o que se amamenta aos peitos de minha mãe».29 A ida para o Egipto...
9             A paz interior e a pouca força que têm contentos e descontentos para tirarem de modo durável esta Presença, tão sem se poder duvidar das Três Pessoas, em que claramente nos parece que se experimenta o que diz São João: «que faria a sua morada na alma»,30 e isto, não só por graça, mas dando a sentir esta presença que traz consigo tantos bens que nem se po­dem declarar, é de tal maneira que não se precisa de andar a buscar consi­derações para se conhecer que está ali Deus.

E isto é quase ordinariamente, a não ser quando a muita enfermidade acabrunha; que, algumas vezes, parece querer Deus que se padeça sem consolação interior, mas nunca, nem por primeiro movimento, torce a vontade sequer um só ponto de que se faça nela a de Deus.
Tem tanta força este render-se à vontade divina que não se quer nem a morte nem a vida; a não ser, por pouco tempo, quando deseja ver a Deus. Mas logo se lhe representa com tanta força ter presentes estas três Pessoas, que com isto se remedeia a pena desta ausência e fica o desejo de viver, se Ele assim quer, para mais O servir e, se pudesse, contribuir para que, por seu intermédio, sequer ao menos uma alma O amasse mais e O louvasse. Pois ainda mesmo por pouco tempo, isto parece importar mais do que estar na glória.
Teresa de Jesus (R 6)

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