1
Oh! Quem pudesse dar bem a entender a V. Senhoria a quietude
e sossego em que se encontra a alma! É já tanta a certeza de que há-de gozar de
Deus, que parece já goza a alma da posse que se lhe há dado, embora não tenha o
gozo. É como se alguém houvesse dado a outro uma grande renda. E, por meio de
escrituras muito firmes, para a gozar daí a certo tempo e colher frutos; mas
até então não goza senão da certeza que já lhe deram, de que gozará esta renda.
E, com o reconhecimento que lhe fica, nem a quereria gozar, porque lhe parece
que não a mereceu, senão somente servir, ainda que esteja padecendo muito; e
até, algumas vezes, parece que daqui até ao fim do mundo seria pouco para
servir a Quem lhe deu esta posse. É que, na verdade, já em parte não está
sujeita às misérias do mundo como costumava; porque, embora sofra mais,
dir-se-ia tão somente tocarem-lhe na roupa. A alma está como num castelo, com
senhorio, e assim não perde a paz, ainda que esta segurança não lhe tire um
grande temor de ofender a Deus e não a faça deixar tudo o que possa impedi-la
de O servir, e assim anda com mais cuidado ainda. Mas vive tão olvidada de seu
próprio proveito, que lhe parece ter em parte perdido o ser, tão esquecida anda
de si mesma. Em tudo tem em vista o que é de honra de Deus, o cumprir melhor a
Sua vontade e que Ele seja glorificado.
2
Conquanto isto seja assim, no que toca à sua saúde e corpo,
parece-me ter maior cuidado e menos mortificação no comer e, no fazer
penitência, não são os desejos que tinha. Mas, ao que parece, tudo vai ordenado
a fim de poder servir mais a Deus em outras coisas e muitas vezes Lhe oferece
como um grande sacrifício o ter de cuidar do corpo, pois muito lhe custa. E
algumas vezes põe-se à prova em alguma penitência, mas, e sem dúvida a seu
parecer, não a pode fazer sem dano da sua saúde, e lembra-se do que seus
prelados lhe mandam. Isto no desejo que tem de ter saúde, também se deve
intrometer bastante amor próprio. Mas, a meu parecer, entendo que me daria
muito mais gosto poder fazer penitência, como me dava quando fazia muita;
porque ao menos parecia-me fazer alguma coisa e dar bom exemplo e vivia sem
este tormento que causa o não servir a Deus em nada. Veja V.
Senhoria o que será melhor fazer quanto a isto.
3 Isto das visões imaginárias cessou; mas parece que sempre se
anda com esta visão intelectual destas três Pessoas e da Humanidade, que é, ao
que penso, graça muito mais subida. E agora entendo, segundo julgo, que eram de
Deus as que tenho tido, porque dispunham a alma para o estado em que agora
está. Mas, como tão miserável e de tão pouca fortaleza, levava-a Deus como via
que era preciso; a meu parecer, são muito de apreciar quando são de Deus.
4 As falas interiores não cessaram, pois, quando é mister,
dá-me Nosso Senhor alguns avisos e, ainda agora em Palência, ter-se-ia feito um
bom disparate, embora não de pecado, se não fora isto.27
5 Os actos e os desejos não parece que levam a força que
costumavam, pois, ainda que sejam grandes, é maior a força que tem o desejo de
que se faça a vontade de Deus e de quanto seja de Sua glória; ora, como a alma
está bem convencida de que Sua Majestade sabe o que para isto convém e está
apartada de todo o interesse próprio, acabam-se-lhe depressa esses outros
desejos e actos; e, em meu parecer, não têm em si força. Daqui procede o medo
que trago em mim, algumas vezes, embora não com a inquietude e pena que
costumava, de que esteja a alma apalermada e eu sem fazer nada, porque
penitência não posso fazer. Desejos de padecer e de martírio e de ver a Deus,
não têm força e o mais ordinário é não poder. Parece que vivo só para comer e
dormir e não ter pena de nada, e até isto de não ter pena, não ma dá, como
digo, que temo seja engano. Mas não o posso crer porque, sem dúvida alguma, me
parece não reina em mim, com força, apego a nenhuma criatura nem a toda a
glória do Céu, mas só o amar a este Deus, que isto não sofre diminuição, antes,
a meu parecer, cresce, bem como o desejo que todos O sirvam.
6 Mas com isto me espanta uma coisa: é que aqueles sentimentos
tão excessivos e interiores que me costumavam atormentar ao ver as almas perderem-se
e, ao pensar se faria alguma ofensa a Deus, tão pouco os posso sentir agora
desse modo, ainda que, a meu parecer, não é menor o desejo de que não seja
ofendido.
7 Há-de advertir V. Senhoria que em tudo isto, quer no que
agora tenho, quer no passado, não hei podido mais, nem está em minha mão;
servir mais, isto sim; poderia se não fosse tão ruim. Mas digo que, se eu
agora, com grande cuidado, procurasse desejar morrer, não poderia nem fazer osactos como costumava, sem sentir as
penas pelas ofensas de Deus, nem tão pouco os temores tão grandes que trouxe em
mim tantos anos, pois me parecia andar enganada. E assim, agora já não preciso
de andar a consultar letrados nem de dizer nada a ninguém: é só assegurar-me se
vou bem e se posso fazer alguma coisa. E isto tenho tratado com alguns com quem
havia tratado o demais, que é o Frei Domingo e o Mestre Medina e uns da Companhia.
Com o que V. Senhoria agora me disser, acabarei de me assegurar pelo grande
crédito em que o tenho. Olhe muito a isto, por amor de Deus.
Também não me foi tirado
o entender que estão no Céu algumas almas dos que morrem, das que me tocam de
perto; outras, não.
8 A soledade me faz pensar que não se pode dar aquele sentido
a: «o que se amamenta aos peitos de minha mãe».29 A ida para o Egipto...
9 A paz interior e a pouca força que têm contentos e
descontentos para tirarem de modo durável esta Presença, tão sem se poder
duvidar das Três Pessoas, em que claramente nos parece que se experimenta o que
diz São João: «que faria a sua morada na alma»,30 e isto, não só por graça, mas dando a sentir
esta presença que traz consigo tantos bens que nem se podem declarar, é de tal
maneira que não se precisa de andar a buscar considerações para se conhecer
que está ali Deus.
E isto é quase
ordinariamente, a não ser quando a muita enfermidade acabrunha; que, algumas
vezes, parece querer Deus que se padeça sem consolação interior, mas nunca, nem
por primeiro movimento, torce a vontade sequer um só ponto de que se faça nela
a de Deus.
Tem tanta força este
render-se à vontade divina que não se quer nem a morte nem a vida; a não ser,
por pouco tempo, quando deseja ver a Deus. Mas logo se lhe representa com tanta
força ter presentes estas três Pessoas, que com isto se remedeia a pena desta
ausência e fica o desejo de viver, se Ele assim quer, para mais O servir e, se
pudesse, contribuir para que, por seu intermédio, sequer ao menos uma alma O
amasse mais e O louvasse. Pois ainda mesmo por pouco tempo, isto parece importar
mais do que estar na glória.
Teresa de Jesus (R 6)
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