16 março, 2014

SEGUNDO DOMINGO DA QUARESMA – SAIR, SUBIR E DESCER



A espiritualidade da Quaresma está marcada pela tensão positiva de alcançar o que é mais valioso para o homem: a liberdade diante das coisas e dos afectos; a posse da plenitude de si; o sonho e a força da Páscoa. Há um movimento espiritual que a palavra de Deus deste domingo apresenta em forma de convite e andamento.
O convite: «Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teu pai e vai para a terra que Eu te indicar» (1ª leitura), é o de esvaziar-se, despojar-se, tornar-se pobre. Esvaziar-se do vício e do pecado para nos enchermos do «homem novo», marcado pela graça; despojarmo-nos do amor ególatra e interesseiro para nos prendermos mais ao amor de compaixão, de ternura e de partilha. Este movimento de deixar o baixo modo de amar para subir até ao elevado amor de Deus, era cantado assim pelo doutor místico S. João da Cruz: «Ó meu Esposo, com esse toque e ferida de amor, não só levastes a minha alma a abandonar tudo, mas até a arrancaste e fizeste sair de si mesma» (Cântico Espiritual, 1, 20).

Este convite ao «despojamento de todas as coisas» e a «sair de si mesmo» tem a força de um andamento marcado pela confiança e abandono em Deus. Sai e deixa-te guiar, desprende-te de tudo e agarra-te a Quem te chamou. Assim o entendeu e recomendou Isaías: «Olhai para Abraão, vosso Pai» (Is 51, 2). É o andamento de deixar o provisório para sofrer a graça da transfiguração. Aqui, na nuvem da transfiguração (Mt 17, 1-9), situada entre o Jordão e a Cruz, a divinização mostra-se na humanidade de Cristo. Sair de ser qualquer coisa para passar a ser «filho» de Deus e herdeiro da vida eterna. Este andamento faz-se subindo ao monte Tabor, à vivência em plenitude do nosso Baptismo/Confirmação. É um andamento que requer uma elevação à divinização, isto é, à promessa da nossa transfiguração-ressurreição em Cristo.

Contudo, esta subida à estatura de Cristo «Este é o meu Filho muito amado») não termina no Tabor. É preciso descer, voltar à terra. A espiritualidade da Quaresma não é uma espiritualidade das nuvens, porque, como recorda o Papa Francisco, «à imitação do nosso Mestre, nós, cristãos, somos chamados a ver as misérias dos irmãos, a tocá-las, a ocuparmo-nos delas e a trabalhar concretamente para as aliviar». Já Santo Agostinho, no sermão 78, 6, afirmava: «Desce, Pedro: querias descansar no monte, mas desce… Trabalha, sua, padece alguns tormentos para possuir a caridade, pelo candor e beleza das boas obras, o que é significado nas vestes cândidas do Senhor».

Também Paulo, como Abraão, deixou o passado e correu para o futuro (Fl 3, 13). Como Paulo, nós corremos subindo o Tabor para alcançar Quem primeiro nos alcançou e nos chamou à santidade: «Ele salvou-nos e chamou-nos à santidade» (2 Tm 1, 8b-10). O andamento da espiritualidade quaresmal vai no sentido contrário ao de Jacques Rivière, que rezava assim: «Meu Deus, afastai de mim a tentação da santidade. Não é para mim. Contentai-vos com uma vida pura e paciente que eu farei todos os esforços para vos dar. Não me priveis das alegrias deliciosas que conheci, que tanto amei, que tanto aspiro a reencontrar. Não confundais. Eu não sou da espécie que precisas. Eu sou casado e pai, sou escritor. Não me tenteis com coisas impossíveis. Perderia o meu tempo nisso, tempo que posso empregar de outra forma ao teu serviço!» (Henri Caffarel, Espiritualidade Conjugal – Uma palavra suspeita).

Hoje quero fazer uma prece de alto risco: Senhor, eu quero ser da espécie que precisas! Faz-me pobre, dai-me a fome e a sede dos Teus bens! Faz-me subir contigo ao monte Tabor! Que eu aprenda a descer até junto dos meus irmãos pelo caminho da compaixão e da partilha, porque neste espécie de descida «até os Santos ajudam». Não me livreis da tentação à santidade. Amém.


Agostinho Leal, ocd

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