A espiritualidade da
Quaresma está marcada pela tensão positiva de alcançar o que é mais valioso
para o homem: a liberdade diante das coisas e dos afectos; a posse da plenitude
de si; o sonho e a força da Páscoa. Há um movimento espiritual que a palavra de
Deus deste domingo apresenta em forma de convite e andamento.
O convite: «Deixa a tua
terra, a tua família e a casa de teu pai e vai para a terra que Eu te indicar»
(1ª leitura), é o de esvaziar-se, despojar-se, tornar-se pobre. Esvaziar-se do
vício e do pecado para nos enchermos do «homem novo», marcado pela graça;
despojarmo-nos do amor ególatra e interesseiro para nos prendermos mais ao amor
de compaixão, de ternura e de partilha. Este movimento de deixar o baixo modo
de amar para subir até ao elevado amor de Deus, era cantado assim pelo doutor
místico S. João da Cruz: «Ó meu Esposo, com esse toque e ferida de amor, não só
levastes a minha alma a abandonar tudo, mas até a arrancaste e fizeste sair de
si mesma» (Cântico Espiritual, 1,
20).
Este convite ao
«despojamento de todas as coisas» e a «sair de si mesmo» tem a força de um
andamento marcado pela confiança e abandono em Deus. Sai e deixa-te guiar,
desprende-te de tudo e agarra-te a Quem te chamou. Assim o entendeu e
recomendou Isaías: «Olhai para Abraão, vosso Pai» (Is 51, 2). É o andamento de
deixar o provisório para sofrer a graça da transfiguração. Aqui, na nuvem da
transfiguração (Mt 17, 1-9), situada entre o Jordão e a Cruz, a divinização mostra-se
na humanidade de Cristo. Sair de ser qualquer coisa para passar a ser «filho»
de Deus e herdeiro da vida eterna. Este andamento faz-se subindo ao monte
Tabor, à vivência em plenitude do nosso Baptismo/Confirmação. É um andamento
que requer uma elevação à divinização, isto é, à promessa da nossa
transfiguração-ressurreição em Cristo.
Contudo, esta subida à
estatura de Cristo «Este é o meu Filho muito amado») não termina no Tabor. É
preciso descer, voltar à terra. A espiritualidade da Quaresma não é uma espiritualidade
das nuvens, porque, como recorda o Papa Francisco, «à imitação do nosso Mestre,
nós, cristãos, somos chamados a ver as misérias dos irmãos, a tocá-las, a
ocuparmo-nos delas e a trabalhar concretamente para as aliviar». Já Santo
Agostinho, no sermão 78, 6, afirmava:
«Desce, Pedro: querias descansar no monte, mas desce… Trabalha, sua, padece
alguns tormentos para possuir a caridade, pelo candor e beleza das boas obras,
o que é significado nas vestes cândidas do Senhor».
Também Paulo, como Abraão,
deixou o passado e correu para o futuro (Fl 3, 13). Como Paulo, nós corremos
subindo o Tabor para alcançar Quem primeiro nos alcançou e nos chamou à
santidade: «Ele salvou-nos e chamou-nos à santidade» (2 Tm 1, 8b-10). O
andamento da espiritualidade quaresmal vai no sentido contrário ao de Jacques
Rivière, que rezava assim: «Meu Deus, afastai de mim a tentação da santidade.
Não é para mim. Contentai-vos com uma vida pura e paciente que eu farei todos
os esforços para vos dar. Não me priveis das alegrias deliciosas que conheci,
que tanto amei, que tanto aspiro a reencontrar. Não confundais. Eu não sou da
espécie que precisas. Eu sou casado e pai, sou escritor. Não me tenteis com
coisas impossíveis. Perderia o meu tempo nisso, tempo que posso empregar de outra
forma ao teu serviço!» (Henri Caffarel, Espiritualidade
Conjugal – Uma palavra suspeita).
Hoje quero fazer uma prece
de alto risco: Senhor, eu quero ser da espécie que precisas! Faz-me pobre,
dai-me a fome e a sede dos Teus bens! Faz-me subir contigo ao monte Tabor! Que
eu aprenda a descer até junto dos meus irmãos pelo caminho da compaixão e da
partilha, porque neste espécie de descida «até os Santos ajudam». Não me
livreis da tentação à santidade. Amém.
Agostinho Leal, ocd
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