30 junho, 2013

CAMINHO CRUCIAL



1. Neste Domingo XIII do Tempo Comum temos a graça de ouvir o Evangelho de Lucas 9,51-62, que é uma página sublime e sobrecarregada de cenários de seguimento, sucessivos e desconcertantes, que interpelam todos aqueles, de ontem e de hoje, que são chamados a seguir o caminho de Jesus.
 2. O primeiro cenário é a anotação radical de que Jesus «tornou o seu rosto duro como pedra na direcção de Jerusalém» (Lucas 9,51). A expressão «tornar o rosto duro como pedra» provém do terceiro canto do Servo do Senhor, de Isaías 50,7, e serve para assinalar uma atitude firme e decidida da qual não se pode voltar atrás. Ainda que, no contexto do Evangelho de Lucas, esta anotação marque a viragem geográfica de Jesus da Galileia para a Judeia e para Jerusalém, a anotação é sobretudo de ordem teológica, salientando a total confiança de Jesus no Pai e a total orientação da sua vida para o Pai, tal como o Servo confia plenamente no seu Senhor e para Ele orienta toda a sua vida. Mas o facto de Jesus «tornar o seu rosto duro como pedra na direcção de Jerusalém» deve ensinar-nos a ver que Jesus caminha sem hesitação para a Cruz, o que faz do seu caminho e do nosso caminho um caminho Crucial.
 3. O segundo cenário é o envio (apostéllô) por parte de Jesus de mensageiros (ángelloi) à sua frente com a missão de preparar (etoimázô) a vinda do próprio Jesus (Lucas 9,52). Extraordinária e preciosa indicação. A missão excede o mensageiro, que é sempre e só um preparador de caminhos para a vinda daquele que há-de vir, Jesus Cristo, que é assim o único imprescindível! Fica claro desde cedo, desde já, que a nossa missão tem a dimensão do precursor humilde, pobre e manso, que apenas abre portas e corações (Malaquias 3,24), e põe a mesa, para que possa entrar o Rei da Glória (Salmo 24,7 e 9). Portanto, a postura do mensageiro ou missionário é a de um pedinte que vai à frente e bate à porta, às portas (também Lucas 10,1). Sim, é um pedinte, «sem bolsa, nem alforge, nem sandálias» (Lucas 10,4), que «come e bebe do que lhe servirem» (Lucas 10,7). Tem de aprender a pedir e a receber; não a insultar, a suspeitar e a ameaçar.
 4. Aí está, portanto, pedagogicamente em contraponto, o terceiro cenário. Trata-se da ilusão de poder de Tiago e João, os filhos de Zebedeu, que propõem a Jesus dizimar uma povoação samaritana só porque esta recusa acolher Jesus. Vê-se que ainda não aprenderam a pedir e a receber, mas sabem tudo sobre a suspeita e a ameaça. Os dois irmãos discípulos, que não entenderam ainda o caminho manso e humilde de Jesus, que tem os mesmos tons do Servo do Senhor, são duramente repreendidos (Lucas 9,55) com o mesmo verbo (epitimáô) com que Jesus estigmatiza os espíritos impuros (cf. Lucas 4,35).
 5. Mas um quarto cenário salta à vista de quem segue atentamente a página evangélica. O início desta viagem de Jesus para a Judeia e Jerusalém fica marcado pelo seu não acolhimento e rejeição numa aldeia da Samaria (Lucas 9,52). Mas a mesma rejeição tinha acontecido no início da sua missão em Nazaré (Lucas 4,29). Portanto, e sem medos e sem equívocos, a rejeição acompanha o Evangelho em pessoa, que é Jesus Cristo. Os seus discípulos de ontem e de hoje devem saber estas coisas, para não procurarem facilidades no seguimento fiel do caminho de Jesus. Aí está sempre a balizar o caminho a palavra de Jesus: «Se me perseguiram a mim, perseguir-vos-ão também a vós» (João 15,20).
 6. O quinto cenário fixa a nossa atenção em alguém que se propõe seguir Jesus, com estas palavras: «Seguir-Te-ei para onde quer que vás!» (Lucas 9,57), logo seguidas da declaração de Jesus: «As raposas têm as suas tocas e as aves do céu os seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça!» (Lucas 9,58). Note-se bem que o texto diz o essencial e omite o circunstancial, deixando-nos sem saber quem era o homem, de onde veio, o que é que o levou a propor-se seguir Jesus, e como terá reagido à declaração de Jesus acerca da sua pobreza radical, que deveria adoptar também quem o quisesse seguir. Tê-lo-á seguido no caminho? Foi-se outra vez embora? Com este procedimento escorreito, a intenção do narrador é certamente apresentar a força do seguimento de Jesus enquanto tal, não o fazendo depender desta ou daquela circunstância, e fazendo dele um seguimento incondicional. Seguir Jesus é um absoluto, sem condições, atitude posta em destaque pelo facto de Jesus não ter eira nem beira, «não tem onde reclinar a cabeça», o que torna incontornável a transparência da sua confiança no Pai. Sua e daqueles que o queiram seguir no caminho.
 7. Permiti que abra aqui um sexto cenário, retomando o dito de Jesus: as raposas têm as suas tocas, as aves do céu os seus ninhos; em contraponto, Jesus, o Filho do Homem, não tem onde reclinar a cabeça(Lucas 9,58). Aqui está a especificidade do homem em relação ao animal. A liberdade do animal é uma liberdade sem responsabilidade, uma liberdade solitária. Não é assim com o homem: «Não é bom que o homem esteja só», é uma das primeiras lições do Livro do Génesis (Génesis 2,18). A liberdade do homem é uma responsabilidade que se assume face à Criação, constrói-se sempre com alguém, sempre diante de alguém. Ao homem compete assumir atitudes responsáveis, o que o impede de encontrar tão cedo um lugar onde reclinar a cabeça. Fixemos outra e sempre os nossos olhos em Jesus, e compreendamos que apenas a morte interrompe este caminho de crucial responsabilidade. Atente-se que é apenas sobre a Cruz que Jesus reclinará a cabeça (João 19,30).
 8. O sétimo cenário é o apelo limpo, igualmente despido de acessórios, que Jesus faz a alguém: «Segue-me!», a que o visado responde imediatamente: «Permite-me ir primeiro sepultar o meu pai!» (Lucas 9,59). E a resposta, quase escandalosa de Jesus: «Deixa que os mortos sepultem os seus mortos. Tu, vai anunciar o Reino de Deus!» (Lucas 9,60). Estas imensas palavras de Jesus ganham ainda maior acutilância se soubermos que a mentalidade e a sabedoria judaicas davam enorme importância ao dar sepultura a um familiar. Era uma acção de tal monta e de tal conta que dispensava da oração do Shema‛, da oração das dezoito bênçãos e de todos os preceitos da Lei (Mishnah Berakhot 3,1a). Mas o caminho novo de Jesus inverte o normal caminhar da experiência humana da vida para a morte. O caminho de Jesus, e segundo Jesus, é da morte para a vida: «nós sabemos que passamos da morte para a vida porque amamos os irmãos; quem não ama, permanece na morte» (1 João 3,14). Quem quiser seguir Jesus tem, portanto, de apostar tudo no novo sentido que Jesus imprime à existência: partir da morte para a vida, com a única chave possível que abre este caminho Crucial: o amor, o amor, o amor! Mais amor, mais amor, mais amor!
 9. O oitavo e último cenário é igualmente forte, igualmente desconcertante. Põe diante de nós alguém, também sem qualquer registo de circunstâncias, que está disposto a seguir Jesus, desde que Jesus lhe faça uma pequena concessão: permitir que se despeça dos seus familiares. Digamos que pede apenas para dar um pequeno passo atrás, e logo dará dois em frente. Já sabemos que Elias fez esta concessão a Eliseu (1 Reis 19,20), como nos é dado ler no Antigo Testamento de hoje. Mas Jesus é mais do que Elias, e não faz qualquer concessão: «Aquele que deita as mãos ao arado, e olha para trás, não serve para o Reino de Deus!» (Lucas 9,62). O poeta inglês Thomas S. Eliot, fala, neste contexto, de «uma insuportável camisa de fogo que Deus teceu com as suas próprias mãos», para depois nos envolver nela, como se fosse o manto de Elias. «As  forças humanas, continua o poeta, não a podem levar; cedo nos apercebemos que apenas podemos viver e respirar se nos deixarmos queimar, queimar de amor». Ainda e sempre e só o amor!
 10. Já se vê que é a cena de Elias e de Eliseu, narrada em 1 Reis 19,19-21, que faz de fundo ao Evangelho de hoje. Simbolicamente, Elias atira o seu manto sobre Eliseu, fazendo-o assim seu seguidor. Eliseu andava a lavrar um grande campo, agarrado ao arado, puxado por doze juntas de bois. Sentindo o chamamento de Elias, Eliseu apenas pede o tempo necessário para ir abraçar o seu pai e a sua mãe. Elias concede. Eliseu despede-se de forma radical, sagrada e festiva. Matou uma junta de bois, e assou a sua carne sobre a madeira do arado. Queimando o arado, é todo um mundo que deixa para trás, sem retorno. Enceta depois um caminho novo atrás de Elias.
 11. Dia de Domingo, Dia do Senhor, doação radical, total, ao Senhor. Entenda-se: é um caminho novo que se abre à nossa frente. Sem retrocessos, sem desvios, sem distracções, sem nostalgias, sem saídas de segurança!
D. António Couto, In Mesa de Palavras

27 junho, 2013

Férias_c/Deus: As criaturas, passo de Deus

Parece que, finalmente(!!!), chegou algo a que podemos chamar "Verão". E, além do calendário, o calor marca o início das férias que, na praia ou no campo, na cidade ou no interior, nos permitem momentos de descanso, de "ócio gratificante" (Bergoglio), porque "só avança quem descansa" (Vasco Pinto Magalhães). 
Mas o descanso não é esquecimento de Deus! É, pelo contrário, até um momento privilégio de encontro com Ele, que nos leva a descansar (Sl 22). E pode sê-lo na natureza, na criação, que, nestes tempos de férias e descanso, apreciamos mais espaçadamente. São João da Cruz ajuda-nos a descobrir como a Natureza, seja a floresta densa ou o extenso areal, a noite estrelada ou o sol que se espelha nas águas dos rios ou dos mares, é ponto de encontro com Deus.



«Mil graças derramando.

Por estas mil graças 
entende-se a inumerável multidão das criaturas. 
Chama-lhes graças
devido à muita beleza com que as dotou. 
E, enquanto as ia derramando,
isto é, povoando a terra inteira,

passou por estes soutos com pressura.

Passar pelos soutos significa criar os elementos, 
que aqui chama soutos. 
Diz que passava por eles derramando mil graças, 
pois os adornava de toda a espécie de criaturas, cheias de beleza.
E também derramava mil graças, 
porque as capacitava para colaborar 
na geração e conservação de todas elas.
Diz ainda que passou, 
porque as criaturas são como um rasto da passagem de Deus; 
por meio delas vislumbra-se a sua grandeza, potência,
sabedoria e demais excelências divinas.
Diz também que esta passagem foi com pressura, 
pois as criatura são as obras menores de Deus, 
que Ele criou como de passagem. 
As maiores, pelas quais mais Se revelou e nas quais mais se fixava, 
eram as da Encarnação do Verbo e os mistérios da fé cristã. 
Todas as outras, comparando-as com estas, 
eram feitas como de passagem, a toda a pressa.

E, assim os indo olhando,
com sua só figura
vestidos os deixou de formosura.»

(São João da Cruz, Cântico Espiritual, 5, 2-3)



24 junho, 2013

Um Rio e dois lagos



Na Terra Santa há dois lagos alimentados pela mesma fonte: o Rio Jordão. Ficam situados a alguns quilómetros de distância um do outro. Mas ambos possuem características bem distintas entre si. Um é o Lago de Genesaré, também conhecido como Mar da Galileia ou Lago de Tiberíades. O outro é o chamado “Mar Morto”.
O primeiro é azul, cheio de vida e de contrastes, de calma e de ondas. Nas suas margens, deflectem-se as flores amarelas dos seus prados. O Mar Morto é uma Lagoa densa de água salgada em que não há vida. A água que vem do rio, ali fica estagnada. O que é que faz destes dois lagos, alimentados pelo mesmo rio, lagos tão diferentes? Simplesmente isto:
O Lago de Genesaré transmite generosamente o que recebe. A sua água, quando chega ali, parte de imediato para remediar a seca dos campos. Sacia a sede dos homens e dos animais. É uma água altruísta. A água do Mar Morto estagna-se. Adormece. É salgada. Pesada. Mata. É uma água egoísta, estagnada, inútil.
Com as pessoas, passa-se o mesmo. Recebem a vida da mesma fonte. As que vivem com generosidade, dando-se e oferecendo-se aos outros, geram vida e fazem viver. As pessoas que, com egoísmo, recebem, guardam e não repartem, são como a água estagnada, que morre e causa a morte à sua volta.
Muitas pessoas são parecidas com o Mar Morto: só recebem, acumulam, não se dão e, assim, constroem uma vida amarga, desgraçada e infeliz. São extremamente salgadas e intragáveis.
Há outras, porém, que dão e se oferecem a si mesmas com generosidade e sem nada esperar como recompensa… Estas são as pessoas mais felizes do mundo. Quanto menos partilhamos, mais pobres nos tornamos. Quanto mais nós damos, mais recebemos.

O que acumula apenas para si, chama desesperadamente pela infelicidade e esta vem ter com ele. Recebe de graça e não reparte; acumula só para si e apodrece; enquanto o que reparte, divide, planta, colhe, refloresce. Espera só em Deus e a seu tempo acontece. Aquele que reparte abre a porta à felicidade.



23 junho, 2013

O NOSSO «LUGAR FELIZ» É CRISTO



1. Este Domingo XII do Tempo Comum oferece-nos a imensa utopiamessiânica que atravessa a profecia de Zacarias 9-14, um povo pobre, explorado, combatido e assassinado, mas que é a «pupila dos olhos do Senhor» (Zacarias 2,12), que tem nele colocados os seus olhos (Zacarias 9,1 e 8). Este povo pobre e mártir tem direito à sua esperança e ao seu rei diferente, que se apresenta pobre e pacífico, montado num jumento, animal de paz e não de guerra, e que porá fim aos instrumentos de guerra (Zacarias 9,9-10). Mundo novo. O texto deste Domingo (Zacarias 12,10-11; 13,1) faz-nos chorar este povo pobre e mártir personificado num filho único, num filho primogénito, martirizado, mas faz-nos ver também, e fixa o nosso olhar nesta figura desfigurada e transpassada, mas transfigurada, pois se tornará numa fonte de água pura, salvadora e salutar (Zacarias 13,1; 14,8). É, neste sentido, que «hão-de olhar para aquele que transpassaram» (Zacarias 12,10). Cruzamento de olhares: olha Deus para ele, por ele; olhamos agora também nós para ele, por ele! É sabido que João, vendo Jesus e relendo este texto de Zacarias, fixa o nosso olhar em Jesus crucificado, transpassado, desfigurado, transfigurado (João 19,37). Então o crucificado ressuscitado, que preside à nossa assembleia dominical e à nossa vida, deixa de ser uma u-topia [= «sem lugar»], para se transformar numa eu-topia [= «lugar feliz»]. Olhar fixo n’Ele! Mãos abertas em concha para Ele, para as encher nessa fonte de graça e de saúde! Sim, somos chamados a transformar o «deslugar» deste mundo em «lugar feliz»!
 2. Faz equilíbrio com este grande texto de Zacarias o Evangelho de Lucas 9,18-24. Começa por nos apresentar Jesus a rezar sozinho, o que acontece imensas vezes no Evangelho de Lucas, que é, por isso, também chamado «Evangelho da oração». E «orar» é, em sentido genuíno, etimológico, beijar, como lembrou o Papa Bento XVI aos jovens reunidos na XX Jornada Mundial da Juventude, realizada em Colónia, em 2005, referindo que a palavra latina para oração é oratio e a locução latina para adoração é ad oratio, contacto boca a boca, beijo, abraço, e portanto, no fundo, amor, ou seja, orientar a nossa vida toda para Deus, entregar a Deus a nossa vida toda, para que seja Ele a olhar para nós, por nós! É importante sabermos, informa-nos o narrador, que os seus discípulos estavam com EleEstar com Ele é o «lugar feliz» do discípulo de todos os tempos. Estar sem Ele é sempre um «deslugar». Se for este o caso, temos rapidamente de mudar de lugar!
 3. Também ficamos a saber, pela informação dos discípulos de então, que as multidões dizem Jesus com o passado, alinhando-o com as figuras do passado (João Baptista, Elias, um antigo profeta redivivo) (Lucas 9,19), não contendo, portanto, nada de substancialmente novo. Em contraponto com as multidões, Pedro avança um dizer novo, diz que Jesus é o Cristo de Deus, sem, todavia, com este dizer, renovar a sua vida, sem fixar n’Ele os olhos e sem encher as mãos em concha com a água viva que d’Ele vem.
 4. É Jesus, e só podia ser Jesus, que se auto-apresenta aos seus discípulos de ontem e de hoje, como tendo de sofrer, ser morto, e ressuscitar ao terceiro dia (Lucas 9,22). Aí está o transpassado, desfigurado, transfigurado, fonte única de água viva para nós, fonte da nossa vida. Dizemos, na verdade, muitas coisas. Mas é necessário ouvir Jesus dizer. Porque só Ele se diz e nos diz. Para o discípulo, escutar é deixar-se dizer! Para o discípulo, dizer é redizer o dito de Jesus. Eis o Mestre. Eis o discípulo.
 5. Ainda duas coisas únicas deste Evangelho, duas pérolas, portanto: «Dizia Ele a todos: “Se alguém quer vir atrás de mim, diga não a si mesmo, e tome a sua cruz todos os dias, e siga-me”» (Lucas 9,23). A primeira pérola está em que Jesus diz para todos. O dizer de Jesus, o seu ensinamento novo, não é para elites, para alguns iluminados. É para todos. Entenda-se que a escola de Jesus está aberta a todos, ricos e pobres, maus e bons, especialistas e ignorantes. Já se sabe que o ignorante é aquele que não sabe; de resto, também o dito especialista não sabe, mas não sabe, para usar o aforismo cortante de Leo Longanesi, com grande competência e autoridade! Ainda bem, portanto, que Jesus diz para todos, e todos devemos estar sentados e atentos na sua escola. A segunda pérola é que a vida cristã, que consiste em seguir Jesus, é coisaquotidiana, de todos os dias. Não é só para alguns dias de festa. Não pode ter pausas.
 6. Dizer não a si mesmo é pensar ao contrário do que estamos habituados a fazer. Pensamos sempre primeiro em nós, em salvar-nos a nós mesmos. E para nos salvarmos a nós mesmos, pensamos nós, temos de nos antecipar aos outros, ser mais espertos do que os outros, passar à frente dos outros. Exactamente o contrário de Jesus, que não quis salvar-se a si mesmo. Quis salvar-nos a nós, pôr-se ao nosso serviço, fazer-se fonte de água viva para nós. «Salva-te a ti mesmo, e desce da Cruz!» (Lucas 23,35-39), eis a tentação que cai sobre Jesus em três vagas sucessivas. Todavia, se se tivesse salvo a si mesmo, não nos salvava a nós! Estamos, portanto, perante a lógica nova do «quem perde, ganha», que é o jogo novo do cristianismo.
 7. Não se pode ser cristão, discípulo de Jesus, seguir Jesus, dizer Jesus, sem dar a vida. O discípulo de Jesus, à maneira de Jesus, tem de pôr em jogo a própria vida, e não simplesmente os adereços. Tudo, e não apenas o supérfluo. Dar o que sobra não tem a marca de Deus, não é fazer a verdadeira memória de Jesus, que se entregou a si mesmo por nós (Efésios 5,2), por mim (Gálatas 2,20). O supérfluo deixa a vida intacta. O dom de si mesmo transforma a vida para sempre.
 8. É esta novidade que São Paulo afirma outra vez na Carta aos Gálatas 3,26-29. Sim, Paulo já não se sabe dizer sem dizer Jesus Cristo. Por Ele foi alcançado, n’Ele foi baptizado, está revestido d’Ele. Se vive, é porque está enxertado em Cristo, o «lugar feliz» da sua vida.
D. António Couto, In Mesa de Palavras

22 junho, 2013

Bilhete de identidade de Paulo (II)


«Mas Paulo disse aos lictores: «Açoitaram-nos em público, sem julgamento, a nós que somos cidadãos romanos; (…) Depois disso, Paulo afastou-se de Atenas e foi para Corinto. Encontrou ali um judeu chamado Áquila, natural do Ponto, recentemente chegado da Itália com Priscila, sua mulher, porque um édito de Cláudio ordenara que todos os judeus se afastassem de Roma. Paulo foi procurá-los e, como eram da mesma profissão - isto é, fabricantes de tendas - ficou em casa deles e começou a trabalhar» (cf. Act 16,37; 18,3).


Actividade profissional e classe social



Paulo era fabricante de tendas. Tendo em conta as práticas do seu tempo, deve ter aprendido essa actividade com o próprio pai. Tal aprendizagem iniciava aos 13 anos de idade e estendia-se por dois ou três anos. O aprendiz laborava o dia inteiro e obedecia a uma grande disciplina. Aprendia a arte, ou para ter um sustento de vida, como trabalhador, ou para substituir o pai, como gestor dos negócios. Isso tinha a ver com os bens do pai. Qual era a “conta bancária” do pai de Paulo? Paulo, sempre que podia, declarava que era Cidadão Romano, e que possuía esse direito «por nascimento», isto é, herdou-o do pai! Quer dizer que o pai ou o avô de Paulo conseguiu obter a Cidadania Romana, a ponto de poder conferi-la aos filhos! Isso requeria «grande soma de dinheiro (cf. Act 22,28). Alguns especialistas concluem que o pai deve ter sido patrão de uma oficina com empregados. Por isso, é possível que Paulo tenha aprendido a arte, não tanto por causa de um sustento de vida, como trabalhador, mas antes para gerir a oficina do pai, como proprietário. Como cidadão, Paulo era membro oficial da cidade (a polis) e podia participar na assembleia do povo, onde se falava e se tomavam decisões em relação a tudo que se referia à vida e à organização da polis (= cidade). Daí resulta a palavra «política». Naquela época, as cidades eram mais autónomas que hoje. A sociedade dividia-se em três classes básicas: cidadãos, libertos e escravos. Só os cidadãos eram chamados povo (= demos), e só eles participavam nas assembleias. Os escravos, os libertos e, já agora, os estrangeiros, não tinham esse direito. Os gregos chamavam a este sistema «demo (= povo) – cracia (= governo)». Na realidade, não vinha a ser «governo do povo». Era governo apenas da pequena elite dos cidadãos. Dentro do Império Romano, particularmente nas grandes cidades, os judeus viviam organizados em associações, reconhecidas pelos respectivos governos. Essas associações gozavam de certa autonomia. Era através delas que os judeus procuravam fazer valer os seus direitos junto do governo do Império, nomeadamente o direito à plena integração dos seus membros como cidadãos na vida da cidade e à plena liberdade religiosa. Assim, teriam direito à isenção de determinadas taxas e impostos e poderiam observar a Lei de Deus e as «tradições paternas». Nessa luta, conseguiram bons resultados desde os tempos de Júlio César. Desta maneira, entende-se também por que é que os judeus da diáspora não sentiam tanto o peso do domínio romano. Eles não eram tão explorados como os agricultores do interior da Palestina. Tinham até certos privilégios. Em parte, é isso que explica por que é que Paulo não se opunha ao Império. Ele chegou a pedir: «Submeta-se cada qual às autoridades constituídas» (Rm 13,1). Não temos informações acerca do papel do cidadão Paulo de Tarso na vida política da sua cidade ou nas associações dos judeus. Mas sabemos que tinha um papel preponderante na vida da sua comunidade. Reunia competências de líder: foi testemunha oficial na execução de Estêvão (cf. Act 7,58); foi emissário do Sinédrio para Damasco (cf. Act 9,2; 22,5; 26,12); alguns estudiosos pensam que chegou mesmo a ser membro do Sinédrio, isto é, do Supremo Tribunal da Comunidade judaica em Jerusalém. Cidadão Romano, Cidadão de Tarso, aluno de Gamaliel, formação superior, líder nato, membro activo da comunidade, formado muito provavelmente para assegurar a oficina do pai: todos esses títulos e competências fazem-nos vê-lo entre a elite da sociedade, tanto por formação, como por posse e liderança. Paulo tinha diante de si um grande futuro e a possibilidade de uma carreira espectacular. Mas a entrada de Jesus na sua vida alterou essa situação vantajosa. O que era lucro tornou-se perda (cf. Fl 3,7). Por causa de Cristo perdeu tudo. Ele mesmo dirá mais tarde: «Por causa d’Ele tudo desprezei, tudo considero como lixo, a fim de ganhar Cristo» (Fl 3,8).

Pe. Vasco

17 junho, 2013

Assim está o mundo


Um homem juntou-se a Jesus, dizendo: «Quero ser teu companheiro». Jesus aceitou, e ambos seguiram viagem. Quando chegaram à margem de um rio, sentaram-se para comer. Levavam três pães. Comeram dois e sobrou um. Depois, Jesus foi ao rio beber água. No regresso, não tendo encontrado  o terceiro pão, perguntou ao homem: «quem tirou o pão?». Ele respondeu:«não sei».
Continuaram a viagem, e, no caminho, Jesus realizou dois milagres. Das duas vezes voltou-se para o companheiro, dizendo: «Em nome d´Aquele que te mostrou este milagre, pergunto-te: quem tirou o pão?». E o homem voltou a responder: «não sei».
Chegaram depois ao deserto e sentaram-se no chão. Jesus dividiu o ouro em três partes e disse: «um terço para ti, um terço para mim e um terço para quem tirou o pão». Aí, o companheiro atirou: «fui eu que tirei o pão!». Jesus disse: «o ouro é todo teu».
Jesus continuou sozinho o seu caminho. Entretanto, chegaram dois salteadores que queriam roubar o ouro ao antigo companheiro. Este, porém, disse: «vamos dividi-lo em três partes e um de vós vai à cidade comprar comida». Um deles foi então à cidade e pensou de si para consigo: «porque hei-de dividir o ouro com estes dois? Vou antes envenenar a comida e ficar com o ouro todo para mim». E comprou comida, que envenenou.
Por sua vez, os que tinham ficado à espera disseram: «porque havemos de dar-lhe um terço do ouro? Em vez disso, vamos é matá-lo, quando regressar, e dividimos o ouro entre os dois».
Quando o terceiro voltou, mataram-no. Depois, comeram a comida envenenada e também morreram os dois. E o ouro ficou no deserto com os três homens mortos ao lado. Aconteceu que Jesus passou por ali e, ao ver aquela miséria, disse aos discípulos: «Assim é o mundo. Tende cuidado».


KHALIDI, Tarif – Jesus Muçulmano: máximas e histórias de Jesus na literatura islâmica.

16 junho, 2013

TRÊS HISTÓRIAS PARA TI E PARA MIM



1. À boca da cena do Evangelho deste Domingo XI do Tempo Comum (Lucas 7,36-8,3) perfilam-se três personagens: o fariseu Simão, Jesus, e uma mulher pecadora. Ao fundo da cena estão ainda os convidados, que só intervêm no final do relato. Todos, menos a mulher, estão recostados à mesa, em casa do fariseu Simão, pois foram por ele convidados.
 2. As primeiras atenções dirigem-se para a mulher, introduzida pelo narrador com aquele: «E EIS uma mulher…», que passa claramente por uma fórmula de atenção. Também não deve o leitor estranhar muito esta súbita, e parece que não desejada, entrada desta mulher em casa alheia. No mundo oriental, as portas das casas permaneciam abertas, e qualquer pessoa podia espreitar pela porta para ver o que lá dentro se passava, sobretudo quando eram perceptíveis movimentações fora do habitual. Estranho, neste caso, foi que a mulher se tenha aventurado a entrar na sala, e não apenas a espreitar à porta!
 3. Uma vez lá dentro, é a pessoa de Jesus o centro único do seu interesse (vê-se que foi unicamente por causa d’Ele que entrou), vão para Ele todas as suas atenções, em relação a Ele cumpre SEIS ACÇÕES simbólicas e grandemente significativas, sempre sem dizer uma palavra:

A) vem e traz um frasco com perfume;
B) coloca-se por detrás dos pés de Jesus;
C) chorando, com as lágrimas banha os pés de Jesus;
C’) e com os cabelos da sua cabeça enxugava-os;
B’) e beijava os pés de Jesus;
A’) e ungia-os com perfume.

4. Enquanto isto acontecia em silêncio, aberto, portanto, à interpretação de todos, também à nossa, diz-nos o narrador que o fariseu murmurava acerca de Jesus, que seguramente não seria um profeta, pois se o fosse, segundo o pensar do fariseu, saberia certamente que era uma pecadora que o tocava, e teria impedido tal procedimento.
 5. Assim pensava o fariseu, quando Jesus mostra que é, de facto, profeta, interceptando-lhe e corrigindo-lhe os pensamentos enviesados e retorcidos, apontando-lhe o essencial, que é a GRAÇA, e pondo-o a falar bem e abertamente. «Simão, tenho uma coisa para te dizer». «Fala, Mestre», respondeu ele. «Um credor tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos denários e o outro cinquenta. Como não tinham com que pagar, fez graça (charízomai) a ambos. Qual dos dois o amará (agapáô) mais?». Simão respondeu: «Suponho que aquele a quem fez mais graça (charízomai)». Jesus disse: «Julgaste bem» (Lucas 7,40-43).
 6. Neste momento, há já na sala um excesso de luz. Salta à vista que asSEIS ACÇÕES da mulher apontam para a SÉTIMA, que enche agora a cena toda e prende todos os pensamentos: é a ACÇÃO DE DEUS, a ACÇÃO DA GRAÇA concedida por Deus e actuante nos dois devedores que não tinham com que pagar (Lucas 7,41-42). Este relevo da ACÇÃO DA GRAÇA está bem marcado, de resto, pelas únicas ocorrências em Lucas do verbocharízomai [= fazer graça] (Lucas 7,21b.42-43).
 7. Vendo que os seus pensamentos tinham sido interceptados por Jesus, o fariseu responde cautelosamente à pergunta formulada por Jesus: «SUPONHO que…». Ao contrário da mulher, que arrisca tudo, expondo-se a todos os olhares, pensamentos e dizeres. O fariseu é mesmo apresentado como o homem do NÃOao contrário da mulher: «TU NÃOme deste água para os pés; ELA, AO CONTRÁRIO, banhou-me os pés com as suas lágrimas e enxugou-os com os seus cabelos; TU NÃO me deste um beijo; ELA, AO CONTRÁRIO, desde que entrei, não cessou de me beijar os pés; TU NÃO me ungiste a cabeça com óleo perfumado; ELA, AO CONTRÁRIO, ungiu-me os pés com perfume» (Lucas 7,44-46).
 8. Em suma, esta mulher pecadora arriscou tudo por amor. Foi perdoada e ganhou a GRAÇA de uma vida nova (Lucas 7,48-50).
 9. E esta mulher pecadora e silenciosa é, para todas as gerações, um imenso discurso sobre a GRAÇA e a ACÇÃO DA GRAÇA de Deus, que nos precede e acompanha sempre. GRAÇA preveniente, concomitante, consequente.
 10. Cruzam-se as histórias bíblicas dos dois Testamentos, e as personagens surgem, como por encanto, lado a lado: é a mulher pecadora e agraciada, e é David pecador perdoado. Natan [= «Deus deu»], o profeta, vindo não se sabe de onde nem de ninguém (não são conhecidos pai ou mãe), apenas de Deus, entra no palácio do rei (2 Samuel 7), cruza porta após porta até chegar junto de David, e diz-lhe quanto Deus manda dizer: «Fui Eu que te tirei das pastagens e fiz de ti chefe do meu povo. Estive sempre contigo por onde andaste. Dar-te-ei um nome grande. Acomodarei o meu povo neste lugar bom. Farei uma Casa para ti e para a tua descendência depois de ti. Serei para eles um pai. Eles serão para mim como meus filhos. Estabelecerei o teu trono para sempre».
  11. Vê-se bem que, pela boca de Natan, Deus estende a David um tapete de luz, um fio de sentido, a perder de vista, que já sabemos que vai até Cristo.
 12. Mas há um maciço de palavras entalhadas no mais puro gume do papiro, que não podemos mesmo deixar no esquecimento. Refiro-me aos Capítulos 11 e 12 do Segundo Livro de Samuel, de que hoje temos a graça de ler um estrato (2 Samuel 12,7-13).
 13. Eis, cena após cena, o que aí fica registrado: Passou o inverno, chegou a primavera. É o tempo da guerra e do amor. David mandou para a guerra o seu exército comandado pelo general Joab. O combate é contra os Amonitas, mais precisamente contra a sua capital Rabbah, actual Aman. Mas David, o rei, ficou em Jerusalém neste tempo da guerra e do amor. Evitou a guerra. Fica com a parte do amor. Levanta-se num belo entardecer, e vem passear para o terraço do seu palácio. É daí que avista uma bela mulher, banhando-se. E a paixão toma conta de David. Incumbe a sua guarda pessoal de recolher informações acerca dela. Dizem-lhe que se chama Betsabé, e que é casada com Urias, um dos militares que partiu para a guerra com Joab. David mandou os seus agentes buscar Betsabé. Dormiu com ela. Depois, ela voltou para casa. Mas alguns dias depois, mandou dizer a David: «Estou grávida».
 14. Sabendo isto, David mandou uma mensagem ao general Joab, para que lhe enviasse Urias. Chegado ao palácio de David, este pediu-lhe notícias de Joab, do exército e do andamento da guerra. Depois disse-lhe: «Desce à tua casa». Mas Urias não entrou em sua casa, e dormiu à porta do palácio com os outros servos do rei. Disseram a David que Urias não foi a sua casa. David mandou-o chamar e perguntou-lhe: «Não regressaste de uma viagem? Por que não foste a tua casa?» Urias respondeu: «A arca de Deus habita numa tenda, assim como Israel e Judá. Joab, meu chefe, e os seus servos dormem ao relento, e eu teria coragem de entrar na minha casa para comer e beber e dormir com a minha mulher? Pela tua vida, não farei tal coisa». David disse-lhe: «Fica aqui também hoje, e amanhã enviarte-ei». E Urias ficou em Jerusalém naquele dia. No dia seguinte, David convidou Urias para comer e beber com ele, e embriagou-o. Mas, à noite, Urias não desceu a sua casa, mas dormiu com os servos do rei.
 15. No dia seguinte, de manhã, David escreveu uma carta a Joab, e enviou-lha por Urias. Dizia nela: «Coloca Urias na frente, onde o combate for mais aceso, e não o socorras, para que seja ferido e morra». Joab, que sitiava a cidade, pôs Urias no lugar onde sabia que estavam os mais valentes guerreiros do inimigo. Os guerreiros Amonitas fizeram um ataque de surpresa, e morreram alguns militares das tropas de Joab, entre os quais, Urias.
 16. Joab mandou imediatamente informações pormenorizadas a David acerca das peripécias do combate, e ordenou ao mensageiro: «Quando tiveres contado ao rei todos os pormenores do combate, se ele ficar indignado e te perguntar: «Por que vos aproximastes da cidade para combater? Não sabíeis que iam disparar do alto da muralha? Quem matou Abimélec, filho de Jerubaal? Não foi uma mulher que lhe atirou uma pedra de moinho de cima do muro, matando-o em Tebes? (cf. Juízes 9,51-54). Porque vos aproximastes dos muros?», então dirás ao rei: «Morreu também o teu servo Urias».
 17. Partiu, pois, o mensageiro e contou a David tudo o que Joab lhe tinha mandado. Disse-lhe: «Esses homens são mais fortes do que nós. Saíram contra nós em campo aberto, mas nós perseguimo-los até às portas da cidade. Então, do alto da muralha, os arqueiros dispararam sobre os teus servos e morreram alguns, entre eles o teu servo Urias». Então o rei respondeu ao mensageiro: «Diz a Joab que não se aflija por causa deste fracasso, e que intensifique o ataque à cidade até a destruir».
 18. Ao saber da morte do seu marido, a mulher de Urias chorou-o. Terminados os dias de luto, David mandou buscá-la e acolheu-a em sua casa. Tomou-a por esposa e ela deu-lhe um filho. Mas o procedimento de David desagradou ao Senhor.
 19. O Senhor enviou então Natan ter com David. Logo que entrou no palácio, Natan disse-lhe: «Dois homens viviam na mesma cidade. Um era rico, o outro pobre. O rico tinha ovelhas e bois em grande quantidade. O pobre tinha apenas uma ovelha pequenina, que comprara. Criou-a, e ela cresceu junto dele e dos seus filhos, comia do seu pão, bebia do seu copo e dormia no seu regaço. Era para ele como uma filha. Certo dia, chegou um hóspede a casa do homem rico. Mas este não quis tocar nas suas ovelhas e nos seus bois para preparar um banquete para o seu hóspede. Antes, foi apoderar-se da ovelhinha do pobre, matou-a e preparou-a para o seu hóspede».
 20. David espumava, e indignado contra tal homem, disse a Natan: «Pelo Deus vivo! O homem que fez isso merece a morte. Pagará quatro vezes o valor da ovelha por ter feito essa maldade e não ter tido compaixão».
 21. Natan disse a David: «Esse homem és tu!». «Assim diz o Senhor: “Tomarei as tuas mulheres diante dos teus olhos e hei-de dá-las a outro, que dormirá com elas à luz do sol! Pois tu pecaste ocultamente, mas eu farei o que digo diante de todo o Israel e à luz do dia!”».
 22. Mas é sempre do amor e do perdão a última palavra. O Filho de Deus amou-me e deu a sua vida por mim (Gálatas 2,20), e assim me justificou, isto é, transformou-me de pecador em justo. E não podemos inutilizar a graça de Deus (Gálatas 2,21). Sim, não é a Lei ou o cumprimento de qualquer humana tradição ou conhecimento adquirido que me salva. É Cristo. Aí está toda a história de Paulo hoje também para nós evocada na Carta aos Gálatas 2,16-21.
 António Couto

15 junho, 2013

Bilhete de identidade de Paulo (I)



«Sou judeu, nascido em Tarso da Cilícia, mas fui educado nesta cidade, instruído aos pés de Gamaliel, em todo o rigor da Lei dos nossos pais e cheio de zelo pelas coisas de Deus, como todos vós sois agora» (Act 22,3).

Lugar, ambiente em que nasceu e se criou

Paulo nasceu em Tarso, na região da Cilícia, na Ásia menor, actual Turquia. Era uma cidade bonita e grande. De acordo com os cálculos de alguns estudiosos, teria então cerca de 300.000 habitantes. Para o Sul, a cidade abria-se para o Mediterrâneo; para o Norte, espraiava-se junto a uma serra com 3000 metros de altitude. Tarso era um importante centro de cultura e de comércio. Possuía um porto muito movimentado. Passava por lá a estrada que fazia a ligação entre o Oriente e o Ocidente. Como é que Paulo, sendo judeu, foi nascer numa cidade grega da Ásia Menor? Desde o século VI a.C., muitos judeus emigraram para fora da Palestina. Em quase todas as cidades do Império Romano, havia bairros judeus, cada um com a sua Sinagoga e organização comunitária. Formavam assim a chamada diáspora (dispersão). Havia uma comunicação muito intensa entre Jerusalém e a diáspora: romarias, visitas, promessas, estudo… Jerusalém era o centro espiritual de todos os judeus. Assim se entende por que é que Paulo, nascido em Tarso, foi criado em Jerusalém. Nascido no seio de uma família judaica, Paulo foi criado dentro das exigências da Lei de Deus e das «tradições paternas». Os judeus da diáspora eram judeus praticantes. A sua maior preocupação era a observância da Lei de Deus. Por isso, lutavam contra aquelas leis e costumes do Império Romano que dificultavam ou impediam a observância da Lei de Deus. Por exemplo: prestar culto ao Imperador, trabalhar ao sábado, prestar serviço militar. Deste modo, conservavam viva a obrigação de serem «a nação consagrada, propriedade particular» de Deus e mantinham-se «separados», diferentes dos outros povos. Por causa disso, eram hostilizados e perseguidos. Mas carregavam a cruz da diferença como expressão da vontade de Deus. Paulo nasceu e cresceu nesse ambiente protegido e rígido do bairro judeu. De lá, olhava para o ambiente aberto e hostil da grande cidade grega. Estes dois ambientes marcaram a sua vida. Ele tinha dois nomes, um para cada ambiente: Saulo, o nome judaico, e Paulo, o nome grego. Ele mesmo prefere e assina «Paulo». Deus chama-o «Saulo».

Formação

Como todas as crianças judias da época, Paulo recebeu a sua formação básica na casa dos pais, na Sinagoga do bairro e na escola ligada à Sinagoga. A formação básica compreendia: aprender a ler e a escrever; estudar a Lei de Deus e a história do povo; assimilar as tradições religiosas; aprender as orações, sobretudo os Salmos. O método era: pergunta e resposta; repetir e decorar; disciplina e convivência. Além da formação básica em Tarso, Paulo recebeu uma formação superior em Jerusalém. Estudou aos pés de Gamaliel. Esse estudo abrangia as seguintes matérias: a Lei de Deus, chamada Torá (os cinco primeiros livros da Bíblia – o Pentateuco). O estudo era feito através de leituras frequentes, até aprender tudo de memória. A tradição dos Antigos: actualizava a Lei de Deus para o povo. Tinha duas partes, chamadas, na sua língua, halaká e hagadá. A halaká ensinava como viver a vida de acordo com a Lei de Deus. Abarcava os costumes e leis complementares, reconhecidas como tais pelas autoridades competentes. Havia a halaká dos fariseus, a mais rigorosa, e a dos saduceus. Paulo formou-se na Tradição dos fariseus. A hagadá ensinava como ler a vida à luz da Lei de Deus. Não tinha a aprovação oficial das autoridades. Era mais livre. Continha as histórias da Bíblia. O modo de recordar e ler a história antiga ajudava o aluno a ler a sua própria história e a descobrir nela os apelos de Deus. A interpretação da Bíblia, chamada Midrash. Midrash significa procura. Ensinava as regras e o modo de procurar o sentido da Sagrada Escritura para a vida do povo e das pessoas. Ou seja, ensinava a descobrir que a janela do texto, através da qual se vê o passado do povo, é também espelho através do qual se vê o presente do mesmo povo. A leitura da Bíblia era o eixo da formação. Marcava a piedade do povo. Desde criança, os judeus aprendiam a Bíblia. Era sobretudo a mãe, em casa, quem tinha o cuidado de a transmitir aos filhos. Assim, desde pequeno, Paulo aprendeu que «toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, refutar, corrigir e educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e esteja preparado para toda a obra boa» (2 Tm 3,16-17). 

Pe. Vasco

10 junho, 2013

Cura de Naaman - águas santificadoras do baptismo


«Naaman, general dos exércitos do rei da Síria, gozava de grande prestígio diante do seu amo e era muito estimado, porque, por meio dele, o Senhor salvou a Síria; era um homem robusto e valente, mas leproso. Ora tendo os sírios feito uma incursão no território de Israel, levaram consigo uma jovem donzela, que ficou ao serviço da mulher de Naaman. Ela disse à sua senhora: «Ah, se o meu amo fosse ter com o profeta que vive na Samaria, certamente ficava curado da lepra!» Naaman foi contar ao seu soberano aquilo que dissera a jovem israelita. O rei da Síria respondeu-lhe: «Vai, que eu vou escrever uma carta ao rei de Israel.» Naaman partiu levando consigo dez talentos de prata, seis mil siclos de ouro e dez mudas de roupa. Levou ao rei de Israel uma carta escrita nestes termos: «Juntamente com esta carta, aí te mando o meu servo Naaman, para que o cures da sua lepra.» Ao terminar de ler a carta, o rei de Israel rasgou as suas vestes e exclamou: «Sou eu, porventura, um deus que possa dar a morte ou a vida, de modo que me enviem alguém para eu o curar da lepra? Reparai e vede como ele busca pretextos contra mim.» Mas Eliseu, o homem de Deus, soube que o rei rasgara as suas vestes e mandou-lhe dizer: «Porque rasgaste as tuas vestes? Que ele venha ter comigo e saberá que há um profeta em Israel.» Chegou, pois, Naaman com o seu carro e os seus cavalos e parou à porta de Eliseu. Este mandou-lhe dizer por um mensageiro: «Vai, lava-te sete vezes no Jordão e a tua carne ficará limpa.» Naaman, despeitado, retirou-se, dizendo: «Pensava que ele sairia a receber-me e, diante de mim, invocaria o Senhor, seu Deus, colocaria a sua mão no lugar infectado e me curaria da lepra. Porventura, os rios de Damasco, o Abaná e o Parpar, não são acaso melhores do que todas as águas de Israel? Não me poderia lavar neles e ficar limpo?» E, virando costas, retirou-se indignado. Mas os seus servos aproximaram-se dele e disseram-lhe: «Meu pai, mesmo que o profeta te tivesse mandado uma coisa difícil, não a deverias fazer? Quanto mais agora, ao dizer-te: ‘Lava-te e ficarás curado.’» Naaman desceu ao Jordão e lavou-se sete vezes, como lhe ordenara o homem de Deus, e a sua carne tornou-se como a de uma criança e ficou limpo. Voltou, então, ao homem de Deus com toda a sua comitiva; entrou, apresentou-se diante dele e disse: «Reconheço agora que não há outro Deus em toda a Terra, senão o de Israel. Aceita este presente do teu servo.»Eliseu respondeu: «Pelo Senhor, o Deus vivo a quem sirvo, juro que nada aceitarei.» E, apesar das instâncias de Naaman, ele continuou a recusar.»
2 Rs 5,1-16

Comentário[1]: não devias acreditar apenas no que vês (Cf. 2 Cor 4,18), para que digas: grande mistério que nem os olhos viram, nem os ouvidos ouviram, nem jamais passou pelo pensamento do homem (Cf. 1 Cor 2,9; Is 45,5; Dt 4,32). Se vejo estas águas todos os dias, como posso purificar nelas? Sem espírito, nada purifica.
No baptismo as três testemunhas são uma só: a água, o sangue e o espírito. O que é a água sem a cruz de Cristo? É um elemento comum, sem nenhuma eficácia sacramental. Que mais não foi o madeiro lançado na água de Mara (fonte amarga do deserto) por Moisês (Cf. Ex 15,23-27)? De amarga, tornou-se em doce, com utilidade futura e esperança de salvação.


[1] Ambrósio de Milão (Séc. IV) – In Antologia Litúrgica, nº2035-2036